Tuesday 5 August 2014

Quando eu era pequeno, aprendi, na escola, com os professores de história e geografia do colégio público em que ingressei aos 10 anos e saí aos 17, que o Brasil errou ao preferir o modelo rodoviário ao ferroviário. 

Aos 10 anos, fazia pouco sentido. Minha mãe tinha um carro velho - comprado de um tio também velho - e trânsito era coisa que, no Rio, só se via em feriadão nas estradas, ou, na então menos célebre avenida Brasil, que em dias de chuva, ou, no horário do rush fazia-se de a distância mais longa entre dois pontos. 

As desculpas dos professores para preferirem trem e metrô a ônibus e carro eram obviamente derivadas da posição de esquerda festiva que podia então existir e da qual eu, obviamente, não podia partilhar - pobre comunista é complexo, um que pegue trem então, mais ainda. Desde os 6 anos de idade, morara em bairro servido por trens e ônibus e, naquele tempo, as composições que faziam longos e demorados trajetos entre localidades de nomes duplos, que o poder público sequer lembrava que existiam, circulavam com portas abertas, mendigos e suas necessidades biológicas, animais e, também, eram conhecidas por serem muitas vezes o destino final dos inimigos da ordem pública da virada 80-90, os surfistas ferroviários - os bicheiros, então, já ocupavam um ponto mais abaixo nesta escala da cadeia alimentar e sustentavam escolas de samba, políticos, policiais, clubes de futebol, centros comunitários, associações de moradores, pequenos negócios, além da enorme lista de pessoas que, sem humildade qualquer e sem o menor medo, pegava algum na caixinha do bicho.

Além disso, os professores bolcheviques do colégio público de então listavam como vantagens do sistema de trens e metrôs os menores gastos com manutenção - óbvios no estado físico que agravava os emocionais de cada um de nós, os locomovidos a solavancos do subúrbio longínquo ao centro do Rio - e a maior velocidade de deslocamento - dado que não havia possibilidade de engarrafamentos, já que a cancela do trem fecha para sua passagem com prioridade a todos os outros meios de transporte, não o contrário. No caso do metrô, que demoraria ainda mais 15 anos para chegar às redondezas da casa onde morei e do qual seria usuário contumaz, porém involuntário, cancelas e paradas sequer existiriam. Aparentemente, o que faz hoje o Metro-Rio ao anunciar interrupções no tráfego é pegadinha. 

A contar ainda, havia, é claro, um menor número de acidentes: colisões entre trens eram impossibilidades estatísticas na Flumitrens de então, as entre carros e trens, ocorrências causadas por distrações fatais ou problemas mecânicos em latas velhas como a que permitia a nós, mais uma família suburbana dona de uma Brasília com idade suficiente para votar - e esta atividade era significativa naqueles idos anos do retorno democrático e de campanha para o Darcy Ribeiro e contra o Moreira - passeios à praia, nas folgas dos fins de semana em que não era necessário fazer os salários escorregadios comportarem os voláteis preços das compras do mês - inflação daquele tipo deixa marcas nada saudáveis e pouco saudosas.

Hoje, não pego mais trem. Também não tenho carro. Mas estavam errados aqueles mestres vermelhos do colégio público - todo professor de história é meio comuna. Metrô tem engarrafamento, trens colidem, seus usuários são chicoteados pelos seguranças e, se não há mais os surfistas de trem, animais nos vagões, nem mendigos e suas necessidades, há as cantorias das religiões de pobre, há o biscoito globo vendido clandestinamente - vejo vantagem - e há composições que, se não andam com a porta aberta, quando lotadas no verão, são ferramentas de perda de peso compulsórias. Que saudade da Brasília. 

Thursday 31 July 2014

Era inútil.

Em um aniversário longínquo, onde a adolescência que não era ainda presente, impulsionando frequentes crises de raiva, de incompreensão e a explosão de uma derme via hormônios, éramos uma família, na verdadeira acepção da palavra, destroçada. Convalescia no hospital mais um parente que logo faria o mesmo caminho de tantos outros e nos faria também reprisar antigos itinerários - da casa do quintal que diminuiu durante os anos que separavam a infância daquela fase futura - que todos esperariam que fosse, aliás, uma fase - para o lugar para onde ultimamente tanto convergíamos, e onde também sabia eu que o consolo seria familiar: o misto quente de pão de forma e a coca cola na birosca ao lado da loja de coroa de flores.
Despedaçada, desfolhada, perdendo galhos, estava cada vez mais aquela árvore da genealogia de pessoas pobres, naquela cidade onde ainda não se avizinhavam grandes eventos, que ficava no país, que no passado fora o do futuro e que no presente, naquela manhã, entre a insistente chuva fina e nosso mau temperamento, era assolado por políticos em campanha, como aquele que o homem de pele escura, advogado, antes polícia militar, agora deitado naquela caixa de madeira, solteirão de longos anos, apoiou.
O Albuquerque, esse era o nome do candidato a vereador no justo período ao final da abertura lenta, segura e gradual preconizada pelo último general a galgar o mais alto assento da república cheia de árvores e pessoas dizendo adeus, como dizia Quintana, era um colega desses que os solteiros às vezes têm e que nós, os do tronco principal daquele sobrenome, formado por tantas mulheres que choravam a partida de mais um - e que ainda chorariam mais - não conhecíamos.
Entre os sorrisos e os mimos que lotavam o fusca cor de goiabada dietética do homem que aquele grupo de suburbanos velava naquela manhã cinza, havia, naquela iniciativa de apoio desinteressado, prêmios por um ano de exploração de outros cafundós da zona norte da cidade: a vaga promessa de coisas que melhorariam - e talvez um cargo no gabinete almejado. 
As bolas de futebol, as bonecas e as espadas de plástico que acompanhavam carrinhos de mesmo material, eram todas imitações possíveis de comportamento adulto a que as crianças daquela região, todas pobres, umas pretas, outras não, que respiravam com dificuldade após as enchentes das águas daquele ano, tinham direito, bastando por isso, na troca de sorrisos, levar para casa um santinho, um panfleto, dos muitos que aliás lotavam o carro que descansaria em relativa paz, como meu tio, em um lugar que evitaríamos, mas que não poderíamos deixar de ir.
A pobreza, ainda que não miserável, daquela região onde se compravam galinhas vivas para almoço de domingo, e onde, ainda vez por outra, animais apareciam mortos no caminho entre a casa do pomar, que também diminuía ano a ano, e a escola que logo seria abandonada, não era explícita. Pobres mesmo eram os que não tinham casa, eram os que em durante a semana tocavam a campainha pedindo alguma comida que sobrasse. Nunca entendi porque não apareciam aos sábados e domingos, quando meu avô então cozinhava frangos, mocotó, língua e todas as carnes em promoção nos açougues do bairro vizinho. 
Nas encostas ainda pouco exploradas do morro atrás daquelas paredes brancas que nos separavam da vizinhança, residiriam, em poucos anos, muitos outros, que como esses, bateriam ao portão pouco antes do almoço dos dias de escola para reservar o possível das sobras da refeição que nós, um pouco mais afortunados, podíamos fazer. 
Naquela entrada do mais recente passeio ao local que teimava a vida em nos obrigar a frequentar não compareceu o Albuquerque. Meu tio iria à terra em caixa de madeira de cor mais clara que sua pele, em dia de céu mais escuro que a camisa de linho que nele fora vestida, cor semelhante a de nossa roupas, naquele último trajeto.
O Albuquerque não foi ao enterro, já disse. Nem nunca mais apareceu em nossa casa. As bolas de plástico e os santinhos ficaram acumulados em um canto do quintal, perto do fusca que em breve seria vendido a um outro solteirão do subúrbio que também jamais veríamos e, meses após, seriam levados por uma chuva torrencial na cidade em que fenômeno natural tornava-se tragédia e assunto em futuras campanhas políticas de outros homens que eu jamais veria a não ser em jornal como aqueles que usávamos para enxugar o fusca depois das lavagens de sábado quando meu tio ainda era vivo e solteiro.
Então, começou aquela chuva. 
Não era como a que pingava no enterro de mais um homem de meia idade, pele parda e levemente careca, mas de bigode e barba sempre bem cofiados e risada que terminava em assovio, como aquele que fazem os gatos em sua asma. Mas era como aquela que tinha chovido antes, lavando as roupas, móveis, geladeiras e casas e seus interiores por sua força. 
Aos quase sete anos, não sabia da inutilidade dos afetos construídos com pedaços de plástico que me permitiam imitar a vida que era então tão distante e que não parecia poder ser algum dia a minha. Só via, no fundo do quintal de ladrilho e de parede de chapisco, as bolas, bonecas, carrinhos, naquelas sacolas de supermercado, encostados, à espera de mais um dia de campanha que ali, então, já não mais havia. 
Quando a água subiu, barrenta, como cor de toddy, e sujou o muro branco que dividia aquela casa de todas as outras da rua, e que fazia daquela casa o meu mundo, entendi. Era inútil, o tempo, as bolas, os carrinhos, o fusca, tudo era inútil. 
Vi quando os carrinhos passaram boiando em suas embalagens plásticas e quando as bolas de futebol foram tragadas pelo ralo que os vizinhos abriam na rua embaixo da chuva, com a enchente na cintura, à base de enxada, pá, gritos de bota as crianças dentro de casa e desespero. Ali, enquanto minha avó cobria os espelhos e relampejava, enquanto as casas mais baixas da rua se inundavam, enquanto os outros meninos saíam com água pela cintura, quando o trem da estação já não passava, eu sabia com certeza de que nenhuma das bolas, dos brinquedinhos, iam adiantar e que ninguém se importava. 
Fiquei parado com os pés na água barrenta, vi uma cobra d'água e esperei ali, sentado, na porta dos fundos daquela casa alta, naquela rua de bairro de nome composto, que a chuva se fosse. Demorou muito, mas mesmo molhado, e chance de gripar, fiquei ali esperando. O tempo para o alto de meus 6 anos e meio era imensurável. 
O sol, muito tempo depois saiu, a enchente baixou e apareceram as paredes coloridas de marrom nescau, o jardim com o abacateiro caído, com o espinafre cheio de lama e sapos para todo lado. A água não invadiu a casa, no entanto, apenas destruiu o passatempo do avô que teimava em não se aposentar, e poderia ter afogado os galos e galinhas daquele quintal, se tivesse chovido um ano antes, quando ele ainda os tinha.
Como veio, a chuva, ela se foi. Como tudo naquelas horas de nós, de torcida, nós - aquelas pessoas pobres daquele bairro esquecido com uma igreja, um botequim, meus seis amigos de escola, bandidos que corriam sobre as lajes e telhados e, em que novamente as ruas ficariam lamacentas, intransitáveis, e, ainda, onde depois o barro endureceria, viraria poeira, que nos faria chorar sem tristeza quando os carros passassem, empoeirando os lençóis nas cordas, as camisas de colégio público, a televisão da sala - a chuva e, seu futuro, o barro, éramos a confirmação do que já conhecíamos, todos, há uma vida de pobreza nos mais velhos, há seis anos e meio de dia após dia até ali para mim. Chuva, barro, olhos empoeirados, nós pobres éramos íntimos. Nos encontraríamos com certeza, embora não pensássemos nisso, em breve. Eu sabia, todos sabíamos, e enquanto as casas ficassem de pé, elas, se vivas, seriam testemunhas. Não sendo, não podia dizer que também sabiam da inutilidade - mas seriam palcos de nosso espetáculo pobre.
O Albuquerque, porém, aquele, eu soube depois, ele não foi eleito.

Thursday 10 July 2014

Nihon, Deutstchland, Brasil

Nos dias 6 e 9 de agosto de 1945, a mando do presidente Harry Truman, os EUA despejavam duas bombas nucleares sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki. Fat Man e Little Boy, os dois únicos artefatos nucleares a serem detonados em cidades povoadas em toda história humana, selaram o destino da Guerra que se arrastava desde 39 e que culminaria em um novo alinhamento do mundo, agora sob uma ótica bipolar. 
Quase 70 anos depois, algoz e vítima são aliados geopolíticos, têm agendas comuns que se iniciaram na ocupação norte-americana do arquipélago nipônico e transformaram a história americana e japonesa de forma definitiva. Uma das principais colaborações entre nipônicos e yankees foi o Plano Colombo, uma versão do plano Marshall, que consistiu de uma série de empréstimos em moeda americana a ser utilizada na reconstrução dos países arrasados pela Guerra. As primeiras sacas de dinheiro chegariam ao Japão nos anos 50 e permitiram o lento e gradual remodelamento da economia japonesa.
É das coisas mais complexas de entender os motivos que levaram o Japão desistir de seu imperialismo local e militarista, que teve efeitos que ainda são sentidos no rancor regional cultivado por seus vizinhos. É tarefa complexa entender como se tornar o maior - e talvez único - aliado de quem matou parte de sua população com o uso de uma tecnologia desumana e que condenou, em um país de território relativamente modesto, mas de população razoavelmente grande, extensões de terra e estruturas produtivas significativas à desocupação. 
A resposta não é simples mas tem a ver com o entendimento pelos japoneses de que este - a aproximação com os EUA - talvez fosse o melhor caminho a se seguir. A ocupação militar do Japão pelos americanos e a dissolução das forças militares locais também podem ter contribuído nesta compreensão. A ajuda financeira e os projetos de investimento na economia do país antes aliado de Eixo também são boas fontes de auxílio na resposta à pergunta proposta: como tornar-se amigo de quem te fez tão mal? 
Depois do jogo entre Brasil e Alemanha começaram a pipocar na internet mensagens carinhosas dos algozes da tragédia do Mineirão. Muitos jogadores e a própria federação alemã de futebol, ao verem o estrago na moral dos brasileiros pós-7x1, postaram frases motivacionais, afagos eletrônicos diversos, mensagens que buscavam reparar ou amenizar um pouco do impacto causado pela partida que pode ter redefinido o futebol brasileiro.
Se as bombas sobre o Japão levaram à rendição incondicional dos asiáticos e ao plano Colombo, bem como a ocupação pelos EUA levaram o país a um novo patamar industrial, econômico e financeiro - não sem muito esforço próprio, diga-se - as mensagens dos jogadores germânicos foram auxílio ao destroçado emocional nacional. Com a vantagem que não demoraram quase 5 anos para serem recebidas. 
Este plano Colombo, talvez mais bem apelidado de plano Müller, ou Schweinsteigner, ou ainda Löw, talvez não nos traga conforto emocional e uma recomposição da até então elevada moral tupiniquim. Mas, talvez, como no caso japonês, possamos aprender com os alemães como modernizar em termos táticos, técnicos, políticos e financeiros o esporte mais praticado no País, bem como transformar o tirânico ambiente futebolístico nacional - que se não é causa do fracasso, nunca contribuiu para o sucesso - em uma estrutura mais produtiva, que respeite as tradições e a cultura nacionais, sem perder o olhar no horizonte futuro, nas inovações técnicas, e que fuja da criação de problemas insolúveis que sempre foram apontadas como raízes dos insucessos do futebol por aqui, e que foram usadas como desculpas eternas para a estrutura desigual e deficitária de clubes e federações.
À semelhança de muitos diagnósticos sobre nossas derrotas - sempre velozes, insolúveis - a mitologia moderna japonesa sempre criou ameaças externas que destroçavam o coração de grandes cidades daquele país e sugerem ainda que remotamente o trauma das bombas que caíram naqueles dias de agosto de 1945. Talvez, em todas as nossas derrotas ecoem ainda o silêncio de 50, ou choro de 82. Alternamos, por aqui, entre a euforia insana e o desespero raivoso, sabe-se.
Pense em todos os seriados de nossas infâncias. Tóquio era destroçada semanalmente e talvez fosse a cidade onde nenhuma seguradora no mundo quisesse abrir filais - falência certa à espera. No entanto, estes monstros da mitologia japonesa nunca impediram a busca da solução de problemas pontuais e do aperfeiçoamento da estrutura produtiva daquele país e de seu avanço. O medo da ameaça externa é componente essencial, aliás. Com tudo isto, a sociedade japonesa, embora ávida consumidora de elementos da cultura ocidental - sobretudo da norte-americana - manteve em seu cerne elementos fundamentais e históricos pertencentes à alma do país que acorda antes de nós irmos dormir. O Japão não deixou de ser Nihon no pós-1946. Apenas aprendeu a ser uma pátria mais harmônica com o avanço humano.
Talvez nosso trauma de 2014 seja o ponto de divisão entre um país feudal em sua estrutura futebolística, atrasado técnica e tecnologicamente, seriamente dependente de financiamento público do seu esporte preferido e a revolução que se diz ter sido operada na Alemanha a partir de 2006. Talvez assim como a turma do leste asiático, possamos com ajuda de alguém que hoje dispõe de caminhos mais avançados e à frente deste País em tantos campos - e não apenas naquele delimitado por 4 linhas - aprender com nossos erros, crescer e, respeitando nossa cultura - fonte de nossa identidade maior, o esporte que nasceu inglês e vive por aqui - nos tornarmos melhores futebolistas brasileiros. 
À semelhança do esforço japonês pós-1945, que pouco tempo após o trauma decidiu seu caminho à frente para os 70 anos que se seguiriam, também podemos nos recuperar. Haverá outras Copas e a tragédia de BH pode, com o perdão da comparação rasteira, ser nossa Hiroshima. O que faremos dela, no entanto, pode ser à semelhança do que fez o Japão. O plano Müller já está aí, aliás.

Tuesday 1 July 2014

Eu queria ser de direita

Eu queria ser de direita. Acordei um dia e tinha certeza que era a hora. Fui à padaria, pedi pão francês, três, com dinheiro de sempre e descobri que só dava para comprar dois. Maldito governo que deixa que a gente pague mais caro no pãozinho de manhã. Se o mundo fosse de direita, duvido que isso acontecesse. Preços livres não sobem.
Comi dois pães, reclamei do governo, reclamei do português da padaria que ficava aumentando o preço do pão e reclamei de novo do governo que deixava que ele lucrasse em cima de mim.
Eu queria ser de direita, e depois do café, com dois e não três pãezinhos, saí de casa para a faculdade em que eu estudava. Peguei ônibus e fiquei puto. Vi que os moleques do colégio municipal entravam sem pagar - o governo acha que as pessoas que estudam numa escola assim, desafortunadas que já são, têm direito à passagem gratuita. Inacreditável.
Eu também não pagava faculdade, mas pagava o ônibus, que só não tinha aumentado por causa dos protestos que eu tinha ido, e pagava plano de saúde, porque o governo não me garantia que caso eu ficasse doente não parasse no Sus.
Lembrei disso e reclamei. Já eram duas, hospitais e pãozinho mais caro. O Governo culpou a Argentina que não dava conta da demanda de trigo, o que aumentava o preço da farinha, que aumentava o do pãozinho. Reclamei da demanda, do preço, da Argentina, do Governo, da inflação, do pãozinho - comecei a achar ruim - do hospital e do plano de saúde - que também ia aumentar o preço, eu sabia.  
Entrei na faculdade com a certeza que ia ser aquele o dia para ser de direita. Já tinha visto que o governo que não produzia trigo deixou o português repassar o aumento do preço da farinha da Argentina para o pão francês que eu como todo dia. O salário, todo mundo sabe, não aumenta nunca - eu não trabalho, mas meus pais sim. 
E tinha o plano de saúde, que meu pai paga, porque o governo não tem hospital decente. É demais. Ele ainda paga um monte de imposto, vê se na Suécia, na França é assim. E ainda estudo em uma faculdade pública - que não tem computador nem ar condicionado.
Depois da segunda aula, que matei tomando cerveja no bar da faculdade - caro, uma cerveja a 8 pila - culpa do dono, aquele espanhol safado, com aquele cabelo sebento - eu já era de direita.
Na aula de história do colégio, aprendi que a gente chamava de direita quem sentava à direita na assembleia nacional, na primeira fase da revolução francesa - eu era bom em história, por isso fiz comunicação. Era uma galera que já tinha ideias de livre mercado, livre iniciativa, acreditava que a burguesia, e não a realeza, conduziria a França a um destino melhor, com igualdade, liberdade e fraternidade. Ou algo assim. A realeza era tipo o governo.
Todo mundo na França pagava impostos altos para sustentar o Rei que não fazia nada. É tipo o governo, só que hoje tem mais corrupção.
Então eu sabia, eu era de direita. O governo só me atrapalhava.
Depois de umas cervas, de enganar o otário que trabalhava no balcão dizendo que bebi só duas, fui no shopping ver o preço do novo vídeo game que eu queria comprar. Sabia, olha lá, muito mais caro que nos Estados Unidos. Vou ver quanto que é na internet. Ah, lá fora é metade do preço. É uns 700 dólares. Dá para trazer na mala tranquilo, é só dar sorte na alfândega. 
Aqui, eu sabia, custa muito mais por causa do imposto que o governo cobra para custear a mordomia dos políticos. Se não, por que é tão caro? Aliás, aqui tudo é caro, a inflação que o governo não controla só faz meu pai reclamar. E eles mentem, você vai no supermercado, no bar, na loja de roupa, tudo é caro, cerveja gringa é carão, cinema, tudo é caro aqui. Nem saber controlar o preço o governo sabe.
Não entendo como tem tanto mendigo na rua com tudo tão caro. Qualquer um ganha dinheiro fácil nesse país. Meu pai reclama que a empregada hoje só quer trabalhar 8 horas, que o pintor cobrou uma nota para fazer dois cômodos pequenos e que nem vai dar para viajar para fora este ano - tudo está caro. Deste jeito vou ter de pedir alguém para trazer o vídeo game.
Eu acordei de manhã e decidi ser de direita. Ao longo do dia fui ficando puto com o governo que deixava a Argentina entregar pouco trigo, que fazia a farinha de fazer pãozinho ficar cara, custo que o português da padaria repassava para o preço que me fazia comprar dois e não três pãezinhos. Depois fiquei nervoso com o preço da cerveja na faculdade - deve ser feita de trigo - com os moleques entrando pela porta da frente do ônibus porque estudam em colégio público - eu estudo em faculdade, devia ter esse direito - com o plano de saúde que meu pai pagava e tinha fila e ia aumentar a mensalidade, com o preço do vídeo game, com o pedreiro que cobrava caro, com o mendigo que perdia tempo e não ficava rico vendendo tudo que estava caro - e com tanto emprego aí - com o governo que congelava os preços deixando tudo caro, com o preço de viajar, com a empregada que não quer trabalhar depois das seis, com o garçom do bar da faculdade que não acreditava que eu tinha tomado duas em vez de quatro cervejas - se ele fosse bom de matemática, não trabalhava para aquele espanhol de cabelo sebento.
Naquele dia, eu decidi ia ser de direita. Só precisava saber o que fazer com isso.

Tuesday 24 June 2014

O mundo em 7 ou 6 colunas

Quando eu era pequeno - não que hoje eu seja grande - não existia internet. Juro. Aliás, não havia um monte de coisas: celular, televisão a cabo, pouca inflação - havia muita. E isto tudo foi há pouco mais de 20 anos.
Jornal era coisa de fim de semana - no distante bairro com dois nomes, onde não havia assinatura, também não havia banca. Em um tempo onde ecologia não era assunto - o jornal já tinha direito a reciclagens: fundo de gaiola do passarinho, embrulho de peixe na feira e de frango no aviário aos domingos, chapéu, gaivota, aviãozinho, rabiola, barco e, função principal, portador de novidades e companheiro de descobertas de um mundo que ficava do portão para lá, além do jardim, depois da estação que levava-nos do subúrbio em que faltava água e luz para o deslumbramento da Central, a dos meninos de rua cheirando cola, da Presidente Vargas, do carnaval da Rio Branco, e às vezes para Madureira, para a feirinha da Pavuna, onde, sabe-se, houve uma grande confusão.
Naquele tempo, se parafraseasse o livro mais vendido de todos os tempos, inclusive daquele, o Brasil, em ritmo de democratização e em clima de ressaca moral futebolística e política, ou melhor, o Brasil que eu via e lia nos jornais naqueles fins de semana e na tv de 6 canais - podendo chegar a 7 com ajuda da geografia e do bombril - já tinha muitos mi(ni)stérios. Tinha inflação bem pior que a atual e aparentemente irrefreável - um dragão, dizia-se, que comeria o valor das minhas moedinhas tal qual comunistas deviam fazer então com os meninos de outros subúrbios de nomes estranhos no tal Leste Europeu. Ali, portanto, éramos não-comunistas.
Havia uma dívida externa impagável - e existiam planos de quitá-la, um deles, consistia em todo mundo no País dar uma grana, por um tempo, a fim de que nos livrássemos do espeto. O que poderia ser revolucionário - a primeira ação de crowdfunding da história brasileira e com motivo nobre - nunca deixou de ser ideia, apenas ideia. Corrupção e corruptos existiam, grupos de extermínio - e suas consequências em preto, branco e vermelho - soma da cor dos jornais e das patrulhinhas da pm na óbvia conjunção - faziam da Baixada um dos lugares mais violentos do Planeta.
O leão - do imposto de renda - rugia todos os anos como hoje ainda o faz, o comunismo andava desacreditado, mas temido - como hoje também está - e resistia em alguns lugares - como hoje sobrevive. Entre eles, era vivo no maior país do mundo, o que tinha o maior dos nomes e por isso, nos títulos dos jornais, era conhecido por sua sigla. Não era um mundo pacífico, e mesmo aquele nome, que provocava acaloradas discussões não apenas nas brincadeiras de criança, mas entre os adultos, intrigava a mim e tanto outros meninos quando o via nos uniformes dos vermelhos nas Olimpíadas - CCCP, não devia ser URSS?
Ainda nos anos em que fui pequeno, estranhava no jornal a existência de um ministério da fazenda e outro da agricultura. Já então acreditava que a redundância em nossas instituições era contraprodutiva. Como agricultura sem fazenda? Ficava então imaginando onde ficaria a tal Fazenda Nacional. Como seria? Teria cavalos? Bois? Plantaria bananas? Devia ser este o lugar da agricultura, só podia ser.
Achava as propagandas de camisinha estranhas - por que falar tanto de uma doença que podia ser prevenida com uma peça de roupa que todo mundo tinha em suas gavetas? Durante uma época, achava que AIDS - outra sigla dos noticiários - era uma espécie de gripe. Como a friagem, era evitável usando uma camisa - pequena que fosse. 
A imprensa chegou a chamar a doença de câncer gay - esta nomenclatura, felizmente, em algum momento, foi abandonada. Do alto dos meus poucos anos de idade, restava-me a ideia de que bastava botar a camisinha e todos estaríamos protegidos daquela friagem. 
Foi um verão quente e usar camisinhas - umas de heróis, outras de boutiques, todas feitas no Brasil, no entanto - só me fez suar mais. Hoje entendo que naquela ordem - botar camisinha, suar, evitar uma doença - talvez residisse de forma primária um mundo futuro bem semelhante - onde se usava camisinha, se suava, se evitava doenças, mas o qual o jornal não muito bem explicava. Suaria então naquele verão pretérito. E em outros, já possuidor das reais intenções daquelas propagandas.
Das muitas confusões possíveis, falava-se ainda dos generais saudosos e de bandidos que trocavam tiros com polícia pela fezinha remunerada nos subúrbios - na época, o grande inimigo não eram os traficantes, mas os bicheiros, que além de patrocinarem escolas de samba, times de futebol, deputados e vereadores, campanhas políticas, clubes, festas, prefeituras, subornarem policiais semanalmente, possuíam fortalezas intransponíveis em subúrbios menos idealizados do que o da minha infância. 
Cada um tem a memória, a idealização e o subúrbio que merece ou que pode se dar. Nas fortalezas do bicho, mostradas nos jornais, em fotos abertas em 7 colunas, me intrigava como aqueles moços sentados em carteiras escolares nas esquinas da zona norte podiam ter tanto dinheiro. Apontador de bicho, para o alto dos meus poucos anos, devia ser profissão muito rentável. Mas eu queria ser bombeiro. Ou motorista de trator. Ou ambos.
No hoje, ainda são muitas as semelhanças com aqueles dias que sobrevivem nas minhas turvas memórias criadas do ponto de vista do menino cuja altura pouco passava a do tampo da mesa de jantar, que andava de bicicleta de aro 10 no quintal de imensos 100 metros quadrados, que caminhava 1,5km para a escola ou para a padaria, que inexistia no subúrbio, onde, independente de idealização, não havia comércio - a não ser um bar que só vendia cachaça e em que havia muitos homens de olhos baços, vermelhos, comentando as revistas de mulher pelada - eram assim chamadas as publicações adultas.
Uns anos à frente, a história mostraria que apenas nas páginas de revista que contavam os próximos capítulos das novelas pode se antecipar o futuro. Um muro que iria cair e unir dois países, a transformação de uma união de repúblicas em comunidade e Estados independentes, a primeira eleição direta em vinte e tantos anos - o escolhido naquela oportunidade, ao contrário do antecessor, não usaria bigode, usaria gel, mas também tinha como experiência pretérita o governo de um dos estados mais pobres daquele país de 3° mundo. Naquela época, terceiro mundo, aliás, não era referência à nossa posição no sistema solar, mas à nossa localização na escala evolutiva natural dos países. Era o título que nos definia então. 
Hoje, neste dia 24 de junho de 2014, quando realiza-se a segunda Copa do Mundo de Futebol no Brasil, imediatos 64 anos após a primeira, diga-se, a história revela-se traiçoeira novamente. Não pelos feitos do futebol, imprevisível por natureza, sujeito a caprichos próprios, às vontades e às veleidades dos atletas milionários e da entidade que congrega a paixão de bilhões de apaixonados e o dinheiro de outros tantos que nem tanto gostam de futebol. Hoje, é o dia em que, após décadas de serviços prestados, uma das grandes continuidades do nosso passado remoto e do não tão distante também, o imortal José Sarney desistiu de sair candidato a um cargo eletivo. Há 20 e poucos anos, o presidente tinha bigodes, referia-se a quem não o elegeu como brasileiros e brasileiras, éramos tricampeões de futebol, tínhamos uma das maiores dívidas externas do mundo, e estávamos em crise eterna na década perdida. Nosso atacante, no entanto, não tinha um chumaço de pelos entre nariz e lábios. Hoje, esta aí o bigode no atleta, mas não no nosso presidente - que aliás, é presidenta. O tempo faz feng shuis imprevisíveis em pelos corporais, vê-se. Nossa dívida se foi, a inflação mantém-se em medida infinitamente inferior à do passado, sediamos uma copa, sediaremos uma olimpíada, não existe mais o Conga nacional, a sorveteria Sem Nome, Dragão Chinês, a cerveja malt 90, somos pentacampeões mundiais de futebol e não nos sentimos mais como parte integrante do álbum de figurinhas Terceiro Mundo. Se é que ele existe.
E aí o Sarney se aposenta. 
Como na música, mas contra as memórias das minhas previsões de futuro naquela casa de subúrbio com janela para o mundo impressa em papel, com fotos em preto e branco, cadernos de 7 colunas e com tinta que sujava as mãos, devo dizer: I have to admit, it's getting better, it's getting better, all the time.

Friday 20 June 2014

Para ser craque

É preciso um bando de coisas. Mas, se algumas são adquiríveis durante a vida pré-craque, outra, talvez a mais importante, é de fábrica.
Há, no grande jogador de futebol, e talvez em todo grande atleta, uma esperteza, uma iluminação prévia à jogada, à vida, quem sabe, que o permite, se não, antever o próximo passo, ao menos reconhecer a familiaridade do presente. Para o grande jogador, o imponderável é uma ilusão. Não há tentativa, há o feito, diria Yoda.
Esta clarividência não é culpa da repetição exaustiva típica de uma vida assim. Embora a ideia de talento seja um tanto complexa - pré-disposição natural, item de fábrica, para um ato aleatório - chutar uma bola, executar um cruzamento ou ser dentista - talento, do ponto de vista biológico é difícil de se prever e em geral complexo de explicar.
Mas sabe-se que uma vida de repetições - bola após bola, cabeçada após cabeçada, calçar as chuteiras, aquecer, alongar, correr, suar, ver, tentar, não conseguir, repetir, e no fim, a solidão do vestiário, o corpo sob a água, o ponto da exaustão plena, do pensamento zero - o craque não apenas antevê a jogada, não apenas advinha o caminho possível e provável da bola, do adversário. Inconscientemente, ele conhece o caminho certo. Se aquele for o dia, e para o grande jogador, muitos são esses momentos, ele limpa a jogada, escapa ao zagueiro, arma o bote certeiro e passa com leveza e graças simuladas - sabe-se, é o auge de seu esforço.
É feito de certeza natural nele: o caminho exato naquele único momento, que se define o imponderável - o sucesso familiar do passe na medida, do lançamento inacreditável, do chute destemido que desbrava a grama e morre na rede, da defesa espetacular, do desarme no último momento, do drible desconcertante.
Em um Milla, em um Romário, em um Didi, em um Lineker, em um Beckenbauer, em um Rivaldo, em um Maradona, o sorriso após a jogada correta não era surpresa com o sucesso, era a familiaridade com o óbvio, vitória intimamente conhecida e antecipada da forma única que só assim aconteceria: o movimento preciso, de tempo certo, em que se desenha a chance imperdível para ele. O craque não advinha o caminho, ele sabe, ele é o caminho.
Quando erra, quando não é um daqueles muitos dias em que ele é craque, sabe-se, houve uma desconexão entre fato e ato, entre saber e fazer. Não se tem registro de um Pelé, de um Zico, de um Jairzinho, de um Bergkamp, de um Banks a culpar a bola, o vento, a grama, o almoço, o hotel, talvez o juiz, mas nunca de suas velhas conhecidas parceiras, pelo dia de não. O craque não erra pelo chuveiro ruim no vestiário, pela grama carcomida na zona do agrião. Quando falha o craque, o ponderável triunfa. Ou outro craque sobressai. Como Zidane, nas copas de 98, 2006, sobretudo contra a seleção do uniforme canarinho, ela também, coalhada de grandes craques - à exceção daquele dia onde desenhou-se a tragédia imprevisível a princípio.
O craque, muitos dizem antever no menino, na menina. Muita gente jura que sabia quem se tornaria Garrincha naquele primeiro treino em general Severiano. Aliás, muitos dizem que estavam presentes naquele dia. Imprecisões à parte, sabe-se o óbvio: o craque se forma na íntima relação que mantém com o futuro e com o presente contínuo. Se se pode antever seu nascimento, este só se confirmará nos muitos momentos de plena e consolidada clarividência nos gramados da vida de eterno presente: treinar, chutar, repetir, errar, tentar, correr, alongar, aquecer, desaquecer, alongar, tentar, acertar, a solidão do erro, a congratulação no vestiário, o apupo das arquibancadas. 
Ser craque é viver no conto em que sempre é véspera de natal. No seu caso, no entanto, sempre é domingo, sempre é dia de vitória, sempre haverá o imponderável, mesmo quando os resultados não são favoráveis. É fazer, conseguir, tentar, repetir, congratular e sorrir. Vida de craque, mesmo na solidão dos dias de não, é saber que em algum momento, como em Casablanca, voltará a sentir a sensação familiar do instante imediato após conquistar o sucesso escorregadio.
Para o craque, a vida é um eterno presente. 
Para nós, mortais, sua existência se comprova no passado e se consolida no futuro. Craque tem de fazer e muito até o dia em que recebe seu título. 
Que, para ele, é o dia de sempre.

Tuesday 17 June 2014

Animália

Todo debate de internet tem uns tipos meio como os loucos de palestra: aquelas figuras que, quando o mediador abre para perguntas, pedem a palavra - em casamento de longa duração, que fique claro - e fazem comentários cuja relevância e proximidade com o tema do seminário fazem os participantes se perguntarem se tinham dormido durante os momentos em que aquele assunto foi abordado. Repare, num congresso de cardiologia, sempre haverá um senhor no fundo da sala, que além de ser cardiopata, sabe que a Nasa já tem a cura do câncer - eles apenas não divulgam. 
É através da química quântica, aliás.
Cabe, portanto, em qualquer palestra, olho clínico ou clarividência do mediador ao escolher quem fará perguntas. Ou estabelecer que questões serão por escrito. E com inscrição e entrevista prévias de antecedentes.
Nos debates muito polêmicos, hoje em dia sediados principalmente nas redes sociais, os tipos se multiplicam e mimetizam alguns comportamentos socio(páticos?).
Tem o historiador de facebook. O camarada é capaz - talvez com ajuda da wikipedia - de citar a escalação da seleção iugoslava de 44 que disputou amistoso em Berna contra um combinado da Westfália como prova cabal de que não foi o Zagallo o inventor involuntário do 4-3-3. Ele também em geral lembra que tudo que aconteceu hoje - a queda das ações da bolsa em abril, de um prédio, a morte por overdose de uma atriz ou o silêncio dos meios de comunicação sobre a matéria da Economist que acusa a Globo de monopolista - como reflexo do passado distante, do qual não nos lembramos, mas sabe-se, os livros guardam registro.
Tem ainda o gozador infatigável. Ele é o comentarista do caos de posts alheios. Seu objetivo é claro: não perder uma piada que só ele viu - e provavelmente só ele vai achar graça. Olhos ávidos e febris, ele observa a timeline em busca do espaço para inserir a frase curta da qual só ele rirá. Mas alguém com senso de humor elevado ou ferino como o dele também curtirá. 
Nas discussões longas, em que minuto a minuto debatedores trocam farpas e insultos a torto e a direito, sempre surge o compartilhador solidário. É sobretudo o camarada que diz pouco, sempre de forma enigmática, ao compartilhar um post com um texto imenso na discussão ríspida e, que ele espera que, obviamente, acalme os opostos.
Há ainda os crentes na bondade, parcimônia e justeza do debate de internet. Estes, em geral, só estão ali para apaziguar ânimos com relativizações diversas: "que isso, gente, calma. Todo mundo sabe que trabalho escravo é bom para ambas as partes... Relativizem". É sobretudo um camarada que acredita que se pode ser leninista e a favor do livre mercado ou que o Antônio Carlos Magalhães e o PC Farias no fundo eram bons sujeitos. Há sempre espaço para relativização.
Há ainda nesta ecologia da rede o cão raivoso. Ele é virulento, nem sempre de direita, há os canhotos, mas fiel à sua ideologia como o pitbull o é ao seu dono. É capaz de atacar um post sobre reumatismo na terceira idade com ideias sobre como a mais valia é um acessório burguês na consecução da revolução comunista - não é um camarada sempre muito por dentro da ideologia que segue. Cachorros, afinal, são fiéis a seus donos. Mesmo quando o dono é digno de cocô no sapato e mordida no calcanhar.
E além destes há o Bolsonaro e sua genealogia. Seus defensores - asseclas? devotos? - são capazes de defesas do indefensável e em geral sentem saudade do que nunca conheceram - muitos jovens Bolsonaristas sentem a ausência hoje da ditadura que não conheceram. É Renato Russiano: aquela saudade que eu sinto de tudo que eu ainda não vi. Eles esquecem da parte do espelho e do mundo doente.
O rol de tipos humanos na internet segue padrões semelhantes ao mundo real e que a gente enxerga também através dos próprios princípios. Há aqueles que escrevem muito - questão de opinião, diria, este camarada que vos digita -  há os voyeurs - observam, tiram proveito e não sabemos nunca o que pensam. Há os que nunca escrevem, não compartilham, não perguntam, não se engajam, talvez nem saibam ler. Mas um dia decidiram que era hora de ter uma conta em uma rede social. 
Há os que compartilham os segredos escondidos da internet: cura de todas as doenças com erva desconhecida da amazônia, conspiração mundial contra ele próprio, interesses escusos e invisíveis em todas as transações humanas, o inferno já está na terra. Nada que precise de senso crítico ou de pesquisa para saber se o que se diz é verdade. Ter aquela informação ou como ela chegou a ele é o de menos. Basta saber que a mídia tentou acobertar, ninguém falou porque o motor movido a bafo de recém nascido canhoto acabaria com a indústria de petróleo. E não é dos interesses deles. 
Deles quem? Deles! 

Friday 13 June 2014

Voz passiva também é ativa.

A polícia feriu duas jornalistas da CNN durante protestos de ontem em SP ao atirar uma bomba de efeito moral - os estilhaços as acertaram. O Globo, em sua edição de hoje, chamou de acidente. Ainda que não haja intencionalidade - que a PM só quisesse usar a bomba contra um manifestante, como praxe - é preocupante que o jornal do falecido Dr.Roberto qualifique assim uma ação onde há sujeito composto, verbos e complemento para melhores títulos. 
Como por exemplo, na versão simples, sem uso da palavra acidente: "Jornalistas são feridas por bomba usada pela polícia". Esta, com voz passiva, temerosa, mas que implica em alguma culpa dos agentes do Estado ali presentes. 
Com voz ativa poderia ser: Polícia arremessa bomba e fere duas jornalistas. Não há sequer juízo de valor aqui, é apenas o que aconteceu. Não se usou nenhum dos substantivos e adjetivos que identificam e qualificam ações normalmente no jornalismo nosso de cada dia. Não se falou em truculência, resposta desmensurada, desproporcionalidade de métodos, imperícia, imprevidência, tragédia, violência, caos - esta palavra que já deveria ter sido banida do jornalismo. Só foi um título com 2 verbos, 3 substantivos, 1 numeral e uma conjunção. Um período composto de orações com relação de causa e efeito definida. 
Ontem ainda outros colegas foram feridos em situações semelhantes. E segundo o jornal da Família Marinho mais 17 pessoas ficaram feridas nos protestos. Na verdade, a frase acima esconde o óbvio - 17 pessoas foram feridas e não feriram-se, como ora se pretende. 
Ficar ferido - ou se ferir - significa - ou dá a impressão de que é - se autoinflingir um dano, ou, que o ferimento decorre de um ato praticado pelo ferido. Ou seja, 17 pessoas ficaram feridas quer dizer que se atribui a elas "alguma culpa" - indefinida, obviamente - pelo que lhes ocorreu. 
O jornal até hoje não entende os protestos, relembre-se. 
O Globo relata em sua primeira página as vaias e os xingamentos à Presidente. Quando se trata de passar a oração da voz passiva à ativa, o jornal falha. "Dilma é vaiada e xingada" não é apenas o uso fortuito de voz passiva. É a generalização do ato de um grupo de pessoas - 60 mil ou 500 pessoas não deixam de ser um grupo - que tem em comum o fato de ter condições de estar em um estádio de futebol em uma abertura de Copa do Mundo. O sujeito aqui é perfeitamente definido.
Não é necessário ser expert em português ou comunicação para subentender o óbvio: a culpa do ferimento é do ferido - salvo no caso da CNN. A culpa da vaia e dos xingamentos é da Dilma, afinal são 33% de aprovação de seu Governo e grandes chances de ela ser eleita no primeiro turno a um segundo mandato. Dito isso, estes 33% de aprovação e a conjuntura eleitoral ou revelam que o índice não é relevante, ou foi mal composto, ou que as opções disponíveis no horizonte de outubro estão longe de ser relevantes igualmente. 
No caso das jornalistas da CNN, há o agravante: não há erro da polícia.  
Há, sim, um acidente. O raciocínio acima implica no óbvio - ferimento a jornalistas não é bem digerido, embora também não se apontem os óbvios culpados - a PM paulista. O dos manifestantes é resultado de sua própria ação. O dano inflingido à democracia e à possibilidade de um caminho menos tortuoso na melhora das condições de vida e do País é, no entanto, determinado, ativo, claro e perceptível.
Só não compreende isto o jornal O Globo. Tem direito. 
Na vaia em voz passiva e coletiva no estádio da abertura da Copa do Mundo, a voz da Família Marinho é ativa, mas talvez ainda pouco audível. Os recados, não são dados à meia voz, mas ao pé do ouvido. 
São recados dados com objeto direto da voz ativa tornando-se sujeito na passiva. Não é que Dilma tenha sido vaiada. É que Parte do público presente ao estádio vaiou Dilma. E o Globo, que não reconhece nem a truculência policial e nem sua ineficácia, vaiou junto. Não é à toa.

Wednesday 11 June 2014

Minha culpa.

Uma dia, na redação, um editor chegou para mim depois de eu voltar com algumas fotos da praia cheia e perguntou se não tinha nenhuma de uma "gostosa" para dar na primeira página: "uma dessas do posto nove". 
Outra vez antes de sair para uma pauta de economia fui avisado pelo editor da vez que não devia fotografar pretos: sabe como é o jornal, né? Aquele era o jornal das esquerdas do país.
Um dia, em um ano de eleição, o editor me pediu para ir para a rua fazer fotos de militantes agitando bandeiras dos partidos. Quando voltei, ele reclamou que eu não tinha armado uma foto com militantes de vários partidos no mesmo local - eles estavam separados.
Em outro dia em um jornal, após a queda de um avião, recebi um e-mail da então chefe me dizendo que não precisava fazer as fotos dos parentes das vítimas chorando na janelas do aeroporto, que deveria tentar fazer retratos identificados de cada um deles pois o jornal iria usá-los. De fato, o jornal devia ser a Caras e não o maior jornal do País. E de fato seria ok em uma tragédia onde morreram 144 pessoas ficar buscando nome e sobrenome de um número gigantesco de parentes a fim de que o jornal fizesse seu álbum de figurinhas. 
Em outra vez, o editor da revista de SP para quem eu frilava me ligou reclamando das fotos para uma matéria sobre sono. Ele disse que os personagens das fotos - entrevistados por telefone por um repórter - pareciam "pobres" e perguntou porque eu não desisti da foto já que eles não eram o "perfil" da publicação. Respondi qualquer coisa e nunca mais trabalhei para eles.
Em outra ocasião, fotografei um escritor e na volta à redação conversei com a chefe que me disse que era "bastante amiga" do camarada. Em muitas outras vezes na volta à redação após fotografar outra pessoa, aquele mesmo chefe me confirmaria "que era bastante amigo" de cada fulano que eu tinha fotografado. Aparentemente, o jornal tinha um quê de facebook numa época em que a rede social sequer sonhava em aportar aqui.
Em outra vez, um editor, no meio de uma operação policial bastante tensa, me ligou e pediu que eu saísse do local onde estava para procurar um camarada que tinha levado três tiros e provavelmente morria em algum dos hospitais da região. Naquele dia, eu era o único fotógrafo do jornal naquela favela. Assim, no dia seguinte, a foto da primeira página era a de uma agência internacional - aconteceu uma hora depois de eu ter sido deslocado para passar 2 horas na porta do hospital tentando uma entrevista com um camarada que tinha levado no mínimo 3 tiros. Ele sairia do hospital ou morreria uma semana depois. No dia seguinte, o editor me cobrou porque eu não tinha a foto da agência internacional.
Um dia houve uma enchente que alagou 3 bairros na Baixada Fluminense, desabrigando umas 3000 pessoas. Naquele dia, eu tinha 3 retratos a fazer e, enquanto as coisas aconteciam na Baixada, com o jornal, o editor e eu sabendo disso, fazia os retratos calmamente na zona sul do Rio. Ao fim das fotos, o editor me instruiu para que fosse à Baixada - "a situação parece que piorou" - recuperar a história que se desenvolvia desde a madrugada. O jornal não mandou repórter. Dei sorte, encarei água da inundação até o peito, perdi um ipod molhado, fiquei absolutamente encharcado e emplaquei uma foto exclusiva na primeira página. O repórter sequer saiu da redação - apurou tudo por telefone.
Em outra vez, o jornal decidiu que não daria mais fotos comprometedoras de candidatos para não ser acusado de favorecer um dos lados da campanha. Nada fez sobre as matérias pouco equilibradas ou mesmo se preocupou em dar igual espaço aos candidatos. Os fotógrafos adoraram trabalhar em uma campanha política onde sabiam que não importa o quanto fosse boa a foto, ela não seria publicada. Foi um grande estímulo.
Em outra campanha, um dos candidatos a presidente foi atingido por uma bolinha de papel em uma caminhada num "reduto típico do partido que estava no poder" - palavras usadas à época. Fiz as fotos - do momento exatamente posterior à bolinha acertá-lo - porque passei meia hora com cotovelo do segurança do candidato no meu pescoço enquanto caminhava de costas com a máquina na altura dos olhos acompanhando o distinto. Após enviar as fotos, recebi uma ligação do editor de fotografia me cobrando fotos mais leves, que não mostrassem tanto a confusão, o turbilhão e o que de fato acontecera. O jornal achava que aquilo não tinha sido nada demais. O editor estava a 400 km de distância da história da bolinha de papel, tinha acompanhado pela tv e disse que a redação - leia-se os editores acima dele - não se impressionava com a história e queria fotos "menos do assunto". No dia seguinte o jornal publicou uma foto de um cara que sequer estava ali quando a confusão aconteceu. A minha foto, coincidentemente foi parar na capa do jornal do colega que não estava lá - as agências venderam as fotos.
Aquele foi o assunto de jornais, tvs e todos os demais veículos naquele dia e nos seguintes. No domingo à noite ainda restou ao programa de maior audiência do fim de semana convocar um perito para explicar se de fato algo pior ou apenas uma bolinha de papel havia atingido o presidenciável. De fato, o assunto era pouco importante e deveria ser publicada uma foto leve da notícia, creio hoje.
Uma vez, durante um jogo eliminatório da Copa do Mundo em que a seleção enfrentaria a Holanda, o jornal pediu que eu fizesse uma espécie de time lapse da torcida gringa em um hotel onde ela se reuniria para assistir à partida. Naquele dia, o Brasil foi eliminado e a foto da primeira página foi feita em Copacabana, no Fifa Fan Fest. Por uma agência. Eu fiz o time lapse pedido que nunca foi publicado. Ainda ouvi cobrança do editor da vez.
Na mesma copa, após um dos primeiros jogos da seleção fiz uma série de fotos dos torcedores no Fan Fest. Uma delas mostrava uma criança de uns 9 anos nos ombros do pai comemorando um gol. No dia seguinte o jornal para quem eu trabalhava deu a foto exatamente da mesma menina só que feita por uma agência. Quando perguntei porque a minha não tinha sido usada descobri que o editor que estava cuidando da primeira página tinha sido deslocado para cuidar da capa do caderno de esportes e que esqueceu as minhas fotos em um espaço que não era olhado por ninguém. O jornal no fim das contas pagou duas vezes pelo mesmo produto. Mas ninguém foi cobrado.  
Em outra vez, ouvi de um editor de fotografia, ao saber que durante uma onda de ataques a ônibus do Rio, um fotógrafo do jornal conseguiu fazer fotos de um dos ônibus incendiados, que ele publicaria a foto de um leitor que tinha um coletivo pegando fogo em Botafogo: "o que importa é a Zona sul". A foto do leitor, obviamente tinha qualidade infinitamente pior e menos informação - era necessária uma legenda para saber onde tinha sido feita. Mas estava geograficamente correta. A do colega era geograficamente incorreta - tinha sido feita no subúrbio. "O que importa é a zona sul" até hoje ecoa na minha cabeça.
Em outro momento, lembro de um editor explicando ao fotógrafo que "só tem duas coberturas importantes no jornal: futebol e carnaval". O Brasil estava nos anos FHC, me lembro agora.
Nada disso me fez crer que o jornalismo é pouco relevante. Mas é muito desorganizado apesar da aparência corporativa. No entanto, tudo isto me fez ter mais certeza de que ele é o exato retrato do que se faz coletivamente dentro das redações. Todos os dias erramos. Jornalistas e fotógrafos fazem matérias e fotos péssimas e boas. Editores fazem escolhas péssimas e outras melhores. No entanto, o agregado de erros sempre parece ser sintoma dos rumos de uma profissão em que salários perdem poder de compra, não se fazem greves, diminuem as vagas de trabalho ano a ano, a circulação dos meios impressos cai e há pouca ou nenhuma crítica sobre a relevância do que é produzido - ou sobre como é produzido.
O jornalismo é a única atividade em que o homem tem certeza que não precisa mais melhorar o processo de produção, apenas precisam melhorar os profissionais.
Ser misógino - a palavra viadinho ecoa não apenas nas redações - racista, sexista, preconceituoso ou ter demofobia não é comportamento exclusivo das mesas onde é manipulada - em seu sentido mais direto - a informação que chega a cada um de nossos lares. Todos cometem erros, há ainda muito a aprender e pouco tempo. 
Pode-se dizer que a imprensa é retrato da sociedade que a mantém. Se assim é, as tiragens cadentes de jornais e revistas - enquanto tendência histórica, não no ano a ano - o violento aumento do lucro de jornais com verbas publicitárias - que ora comemora-se - a segmentação da linha editorial pelo perfil do leitor - branco, dois filhos, católico, um cachorro, heterossexual - os baixos salários e a inexistência de greves - a mitologia do tio Patinhas é forte no setor e é reforçada pelos astronômicos salários de empresários do jornalismo - além do total desrespeito às leis consolidadas por Vargas nos anos 40 do século passado, talvez reflitam um pouco mais do que a sociedade em que vivamos. Talvez sejam em si retrato da sociedade em que queremos de fato viver. Ou talvez, a aparente inviabilidade econômica contraditória em que jornais hoje vivem mergulhados - mais verbas de publicidade, menos empregos e credibilidade - seja retrato de que eles, jornais, já não mais servem à sociedade que os mantém. 
Em qualquer dos casos, embora ninguém possa crer no fim do jornalismo como profissão, poucos fora da redação ainda creem em sua proposta e no seu compromisso com o mundo em que existe ao seu redor. Não foram os protestos de junho do ano passado que trouxeram essa sensação. Não foi a internet - que até hoje os empresários lutam para dominar. Foram 30 anos de concentração de profissionais, salários e atenção em um grupo muito pequeno de empresas. Se apenas seguiu-se a tendência, não se sabe. Sabe-se que a tendência tem reflexos nefastos sobre a profissão e a carreira. 
E sobre a credibilidade da profissão junto ao leitor.

Tuesday 10 June 2014

Ele se chamava Paulo

Ele não desatinou como a moça do samba. Ele perdeu-se. 
Dia desses acordou, se vestiu, tomou café, botou a cara de desânimo, foi à rua. Desceu de elevador, saiu do prédio, o porteiro fechou o portão, pé ante pé, sobre a calçada de mais um dia quente, sem sol, mas abafado, suando já um pouco, a cidade passando por ele a grande velocidade.
Não se abalou com os ânimos semelhantes, com os ônibus inigualáveis, com a descrença da maioria. Parou na banca de jornal, observou as manchetes, nada leu, nada importava: nem o futebol, nem a eleição, nem a musa, nem o sangue no olhar do cidadão que ao lado saboreava o noticiário do diário popular.
Seguiu em diante, pegou a condução, não via pessoas, nem se dava conta se eram apenas vultos, absorveu o troco, não disse bom dia ao trocador, sentou-se no fundo, viu a cidade acelerar.
Desceu no ponto em que suas calças já sabiam ser hora, pé ante pé, sapato após sapato, caminhando sobre o calçamento, ombros abaixados, pasta entre o braço e o corpo.
Parou no bicheiro, apostou no burro, passou no botequim, pediu um café, pediu uma cerveja, bebeu lentamente os dois, comeu um pão, ouvia histórias, via a tv ligada, o rádio, não entendia as imagens, não compreendia o som.
Passou o guardanapo na boca, áspero ou liso, não sabia, foi ao espelho, se olhou, não se viu, entrou no banheiro, saiu, mão na carteira, entregou dinheiro, reteve o troco. Ouviu os comentários sobre o futebol.
Pediu mais uma cerveja. Esperou. Viu o tempo mudar, viu um vento bater, as pessoas continuavam cinzas, vultos, sem rosto. Esperou que o tempo mudasse. Tomou a segunda, e ainda não eram nove.
Viu a chuva chegar, a tv falhou, a apresentadora deve ter sumido - não via - a luz piscou, o tempo fechou, o dia virou noite e ele ainda não ouvia nem via nada. Só esperava.
Quando sentiu os pingos no peito, pegou a pasta no chão, botou no balcão, pediu mais uma, pagou todas, terminou aquela, repensou no palpite do bicho. saiu do bar. 
Chegou ao trabalho encharcado, deu 3 passos, dobrou à direita, entrou, desmanchou na cadeira, pingando chuva por todos os poros no chão.
Passou lá as 4 horas seguintes. Saiu só, comeu no botequim do café, empurrou a refeição com cerveja, palitou os dentes antes de tomar mais um café. Pagou, botou o troco na carteira, desceu o degrau do bar, pisou no calçamento, viu um cachorro, viu um gato sobre o saco de cereal no armazém, nada disse, nada mesmo.
Voltou ao trabalho, mais 4 horas na frente dos papéis, mais tempo nos anos em que já mofava no cubículo 2x2 onde procrastinava e esperava uma aposentadoria dali a 20 anos. Esticou-se na cadeira, afrouxou o cinto, deslizou o pé dos sapatos e esperou.
Era terça e faltavam ainda mais 3 dias de repetição para o vazio do apartamento sem plantas, sem animais, só ele, a cama, poucos móveis e um armário, onde ficava aquele mesmo paletó que o esperaria para mais outras segundas e terças, cinzas ou não, com chuva ou sol, de trajeto entre o cubículo onde usava terno e o onde vestia-o de manhã.
Ele se chamava Paulo. E, se pudesse pensar sobre cada uma das coisas daquele dia, também não saberia dizer se tinha escolhido isto. Ele tinha se perdido.

Friday 6 June 2014

Tm css q n s cnt nm pr v*

Todo mundo guarda seus segredos. Os da dona de casa podem enrubescer maridos, os dos filhos merecerem palmadas, os da mídia, a confirmação de tudo que sempre soubemos - golpista, vendida, entreguista, comunista, interesseira, de direita, marxista, petista. Os dos amantes, as alcovas os guardam. Os dos chefes, às vezes, rendem uma imediata queda na produção de seus subordinados, ou muitas palavras abafadas na máquina de café - "dizem que ele está comendo a secretária dele e a mulher do colega". Tudo em sussurros. 

Aquilo que vai escondido nos paletós dos políticos, normalmente acreditamos, poderia fazer emergir o espírito revolucionário que nunca faltou, mas que teimamos em fingir que nunca houve por aqui - e as forças constituídas de manutenção da ordem teimaram em dizimar. Mas em defesa dos nossos representantes, resiste a teoria de que uma vez tudo preto no branco em relação a suas intenções, seus adversários - os inimigos, as forças terríveis - conseguiriam manipular através da mídia golpista o real sentido de suas palavras: não era uma entrevista, era cilada, diria o pagode. Assim sendo, é necessário marcar com pontos as vogais nas palavras já escritas nos jornais e ditas pelas autoridades e candidatos a autoridade - é assim no hebraico, na política e no economês - para o que você lê todo dia comece a não ser uma língua estranhíssima de região exótica que a gente visita, mas só meia dúzia de seres humanos compreende.

Embora não seja um segredo propriamente dito, a inflação, que hoje toureia o Governo e o Bacen, acende a oposição, enlouquece a classe média, rouba renda dos mais pobres e favorece em quem apostou previamente no estouro da meta, deveria ser melhor explicada. Não será, aliás. Economistas à direita e à esquerda acusarão causas diferentes, e usarão um monte de números, equações, teorias para explicar o óbvio: há um crescente aumento dos preços ano a ano que tem consequências das mais variadas e que é capaz de promover arranjos distributivos imprevisíveis e indesejados. 

O mais importante para colocar pingos nos is nesta história toda é compreender que a inflação é uma, mas pode ter dois diagnósticos reconhecidos por muitas teorias econômicas - acredite, elas são muitas. Ou seja, há apenas dois motivos para a formação da inflação. Porém, há somente um remédio conhecido, testado e em uso no mundo contra os mal do século passado: desaquecimento da economia e o aumento do desemprego. Para isto, ou bem o governo gasta menos - ou aumenta impostos - ou usa a taxa de juros. 

Embora a saída recessiva seja recomendável apenas quando há uma inflação de demanda, ela é usada como antibiótico de amplo espectro. De forma simples, a inflação é o contínuo aumento dos preços de uma economia medido no tempo. Preços aqui são todos os valores em dinheiro pedidos em transações. Uma inflação de custos seria então um aumento agregado de todos os preços derivado de uma variação na oferta de bens. A crise do Petróleo, nos anos 70, que foi um choque negativo no oferecimento desta matéria prima, levou a um aumentos de todos os custos dos países, seria bom exemplo. A inflação resultante veio de um fator externo ao sistema, e ela foi criada a partir da elevação do custo de um bem que impactava economias fortemente.

Já uma inflação de demanda é registrada quando a capacidade de uma economia atender às necessidades de bens e serviços de forma agregada, em seu conjunto, está em seu ponto máximo. É intuitivo. Se você está na praia e está um dia de sol absurdo, muito quente, muita gente e só um grupo pequeno de vendedores, uma cerveja, um coco, uma água, se não houver tabelamento, tendem a ter preços mais altos. Imagine ainda que é uma praia distante, deserta, ir a outro lugar comprar um coco seria difícil, talvez impossível. O que você vê aqui é um caso de inflação de demanda super simplificado. Como sabemos, um país, não demanda apenas bebidas em um dia quente, mas bens dos mais variados e serviços de todos os tipos: cortes de cabelo, financeiros, entrega de pizza em dia chuvoso, etc...

No diagnóstico da inflação de demanda mora um componente importante: uma economia tem uma capacidade máxima de produção no curto prazo. Desta forma, o único jeito de aumentar a oferta agregada de bens e serviços - a fim de aproveitar a demanda aquecida - seria um aumento da capacidade produtiva. Todos os modos de expansão da oferta agregada implicam custos. Ou contratam-se mais pessoas, ou compram-se mais máquinas, ou mais matérias primas, ou trabalha-se mais. Estes custos são financiados com empréstimos ou com capital disponível das empresas e do Governo. Desta forma o aumento da taxa de juros, deve diminuir o investimento, porque se torna mais cara a ampliação da atividade produtiva via financiamento.

Veja: se o custo dos empréstimos para expansão sobe, fica mais caro para quem produz aumentar sua escala de produção. E o custo do dinheiro é dado pela taxa de juros, aquela que o Banco Central controla - recentemente aumentada. De forma simples, o Banco Central empresta dinheiro para bancos e fixa um patamar mínimo de juros cobrados nos empréstimos. Se o preço do dinheiro sobe, menos pessoas ampliam seus negócios, logo a oferta de bens e serviços não cresce significativamente, o que provoca um viés de preços que não baixam. Por outro lado, sabe-se que excetuando o consumo de primeira necessidade, quando os preços aumentam, as pessoas demandam menos bens e serviços. Se comer fora fica mais caro, para a maior parte das pessoas, isto significará comer mais em casa. 

Desta forma, preços mais altos desestimulam o consumo de bens não essenciais. Aos poucos, a diminuição da demanda força uma diminuição dos preços. Mas é necessário mais que isso para que uma vez que os preços baixem as pessoas simplesmente não demandem mais jantares fora de casa aumentando os preços de novo.

A conjunção da diminuição dos investimentos com a do consumo cria um freio do crescimento econômico. Alguns preços são mais ou menos reativos ao aumento da taxa de juros. Mas devem ceder de maneira mais ou menos geral, ou ao menos, parar de acelerar, com a queda no consumo. Mas falta ainda entender uma outra coisa e, desta, os políticos, economistas, em geral, não falam.

Trata-se do efeito da taxa de juros no mercado de trabalho. Tudo mais mantido constante, dia a dia, mais pessoas devem entrar na fase adulta da vida - seja lá o que isso signifique - e procurar trabalho - seja lá o que isso signifique. Tudo mais mantido constante novamente, o número de demandantes por empregos cresce. Se essas pessoas acharem ocupações, a economia cresce pois há mais pessoas com renda e esta renda poderá ser usada em transações ao longo da sociedade que permitem novos encadeamentos. Exemplo: você encontra emprego e passa a comer fora uma vez por semana, ou almoçar todos os dias em restaurante. Com isso, o dono do restaurante ganha mais um cliente, talvez empregue mais um garçom ou cozinheiro, talvez abra um segundo restaurante e assim o movimento de mais um salário provoca multiplicações de renda ao longo da economia.

Se muitos não encontram emprego, no entanto, a economia não cresce. O tal do PIB não cresce com mais gente desempregada, tudo mais mantido constante. Se a taxa de juros sobe, sabemos, diminuem parte dos investimentos em atividades produtivas - fica mais caro abrir o segundo restaurante, contratar o novo cozinheiro, comprar um estoque maior de massas ou comprar um novo fogão. A taxa de juros subindo, mais ou menos como na célebre cena de Casablanca, um dia, pode não ser hoje, pode não ser amanhã, mas, um dia, o desemprego subirá. 

Na teoria econômica mainstream - a que hoje é a de Aécio, Mantega, Tombini, Eduardo Campos, Leda Nagle, da Mirian Leitão, do presidente do Fed, do pipoqueiro da esquina e de seu chefe - desemprego é um fator importante para controlar a inflação. Se o entendimento que temos é o de que um aumento da oferta permite que os preços abaixem - surgem novos vendedores de coco na praia, eba! - o desemprego arrefece o ânimo altista, pelo lado da demanda, dos preços. Isto porque, considera-se que a oferta agregada pode crescer no longo prazo por fatores externos: nível tecnológico e qualificação. Mas a demanda obedece às variáveis de dentro do sistema: consumo, investimento, gastos, exportações, importações. 

A explicação do uso do remédio dos juros mora na teoria criada há uns 200 anos para o comportamento do mercado de trabalho. 

No mercado há pessoas que querem trabalho e pessoas que precisam de trabalhadores. Se o número de patrões aumenta, ou se são necessários mais empregados, existe uma tendência à alta dos salários. Se o contrário acontece, uma baixa deve ser enxergada no preço da mão de obra. O desemprego é um desestímulo a reivindicações salarias, obviamente. O trabalho, nesta visão, um encorajador. Veja ainda que, aqui, o trabalho é como o coco na praia, tanto faz de quem você compre, importa é que tenha água, como diria Ford. 

De novo, é uma simplificação, mas que serve em muitos setores. Assim sendo, se sabemos que o custo da mão de obra é parte da formação de muitos preços - em uns mais, em outros menos - a capacidade de trabalhadores demandarem maiores salários reforça o curso de alta dos custos que deve levar a preços mais altos. Há apenas um agravante aqui. Trabalhadores negociam seus salários com vistas ao movimento não apenas do desemprego, mas dos preços. Em um cenário em que os preços aumentam - tudo mais mantido constante - trabalhadores demandarão maiores salários. Aí, a pressão por maiores salários contamina direta ou indiretamente a pressão por maiores preços. Desta forma, independente de quem consegue repassar maiores aumentos, cria-se uma tendência inflacionária.

Por isso, é através do desemprego e da diminuição da atividade econômica que a elevação dos juros combate a inflação. No fundo, o que se pretende é diminuir os repasses de aumentos de preços e fixar salários através da ancoragem das expectativas e da diminuição do poder de barganha dos trabalhadores. Ou seja, juros mais altos proporcionam, neste modelo, controle da inflação porque reduzem a atividade econômica através da diminuição do investimento e da redução do consumo causada pela diminuição do emprego. Obviamente, a recessão não elevará o PIB, mas controlará ao menos temporariamente a tendência à alta de preços. Sobre os custos - desemprego, crescimento provável do endividamento do Governo, das famílias e do setor produtivo, redução da renda gerada, aumento dos gastos com seguros e previdência - menos gente trabalhando é menos gente contribuindo - obviamente, disto, nossos candidatos não falarão. 

O detalhe é que este "ajuste" só funciona com o diagnóstico de uma inflação de demanda, que é a variedade da doença em que o Governo e a oposição balizam suas propostas para o próximo mandato na cadeira mais alta da república. Se assim é, ao menos, poderiam ser mais sinceros com seus eleitores. Segredos têm motivos - às vezes são pessoais, às vezes não. Mas o interesse público no debate e na tomada de rumos deveria ser preponderante. Não é. Todos falam em ajustes. Ninguém fala em custos.

*Tem coisas que não se conta nem para avó.

Friday 30 May 2014

Era tudo culpa do Raul.

Quando meu avô morreu após 21 dias no hospital enfrentando uma leucemia que reduziu o peso de um homem de quase 100 quilos a pouco mais de 70, minha casa se tornou uma cripta. Minha avó - alheia ao que acontecia - começava a demonstrar o sinais da esclerose que se aceleraria nos próximos anos, mas ainda demoraria uma década para levá-la definitivamente do nosso mundo para o cemitério no subúrbio onde todos os meus outros parentes estão enterrados. Meu tio mais moço, que pouco mais tarde iria para o mesmo endereço, decidia quais seriam os próximos passos daquela família àquela altura em franco desmantelo.
Não éramos especiais, era o subúrbio que nos fazia comuns no fim daqueles anos 80 de conversas telefônica inaudíveis, de ombreiras na tv e cocaína nos camarins. Eu não sabia de nada daquilo. Ocupava-me de uma pré-adolescência que não respeitava luto - música e garotas já me interessavam em grande medida e ocupariam logo o espaço da matemática - confinando meu avô às lembranças da infância mais distante naquela casa de bairro pobre que custou pouco mais de um telefone para ser construída, na década em que carinhosamente o governo errava tudo que tentava.
O plano cruzado, o Bresser, o plano cruzado 2, a queda do muro, naquele dia passavam longe de ser problemas naquela cozinha de azulejos até o teto - era mais fácil de limpar - e de janelas que tremiam na passagem do trem. Era uma casa ampla, espaçosa, iluminada, típica de um bairro sem graça, sem padarias, sem mercados, sem farmácia, e que por isso me obrigava a comer pão dormido tantas e tantas manhãs. Tinha uma horta na frente cultivada por todos nós os moradores daquele endereço, compulsoriamente, ao sábados com direito a encontros semanais com sapos e pererecas e a entrega de estrume por um homem em uma carroça puxada por um cavalo, ambos conhecidos por meu avô. Homem e cavalo bem indiferentes, diga-se.
Naquele espaço quadrado, sentados à mesa, o tio que viraria vizinho de meu avô em Irajá, cova de número que esqueci, mas que foi usada diligentemente por todos os parentes da família, na última fé daquele dia em que chovia, na banca de bicho do lado da loja que vendia coroa de flores. Ninguém ganhou, mas mais uma vez mais um número místico seria tentado na cabeça, cercado no grupo, com a milhar invertida e em mais combinações que os inventores e aperfeiçoadores daquele jogo especialista em tosar os bolsos pouco recheados de pessoas pobres criavam e criariam nos próximos anos. Éramos como outros pobres e tínhamos uma estranha fé em jogos com números.
Era quase de noite, na mesa da cozinha, agora sem vapor panela esquentando comida, que decidi abrir uma janela naquele dia fúnebre. Fui ao quarto, liguei o som, coloquei o disco e na terceira faixa, já deitado um pouco mais no escuro, com a cabeça apoiada no travesseiro, ouvi a reclamação que vinha do conselho de sábios: Lá vai ele ouvir o diabo desse Raul Seixas.
Era sempre Raul. Era o Raul sempre.

Monday 26 May 2014

Câncer do ano do rato.

Daqui a uns dias, comemoram-se os 20 anos do primeiro momento de circulação do objeto que hoje dá nome e face ao intercâmbio entre nossas horas de trabalho e a sorte do patrão ter nascido patrão. Serão 20 anos deste meio de troca canceriano - nascido em 1 de julho de 1994 - e que nos permitiu nos acostumarmos ao não óbvio: preços que flutuam menos que os ganhos de nossos contracheques - holerite, no paulistês -, nada de congelamento de preços, nunca mais nenhum confisco financeiro semelhante ao que sofreram os hermanos - e nós também, diga-se a verdade. 
Ainda hoje é engraçado pensar naquele momento em que você ganhava em uma moeda, recebia em outra cujas cédulas pagavam o seu chopp e as contas - era a Urv. Todo mês via seu carrinho levar para casa os então campeões do plano que catapultaria a tucanidade paulista a 2 mandatos na cadeira mais alta da república: o frango, o iogurte e o chuchu - que atingiu o valor de 1 centavo por quilo na nova moeda, naquele mês em que seríamos campeões inclusive da Copa do Mundo de Futebol. 
Tudo isto começaria no fim último ano do mandato do presidente que começou vice, passou a titular, topete impávido entre os dois momentos, e ficou mais célebre por outros cabelos - não seus, mas os da moça de sobrenome com leve menção à pelugem que exibiria ao lado do então manda brasa mor do país na maior festa da terra. Célebre imagem, aliás. O que teve então o real de tão diferente de tudo que havia aqui? Com o plano, não haveria mais a tristeza infantil habitual com os cortes de três zeros que faziam milhões de cruzeiros economizados em porquinhos virarem milhares, após pronunciamentos solenes, naquele espaço de tempo rarefeito entre novela das nove e jornal das oito. O montante final nos cofrinhos, ao fim de cada novo pacote, sempre teimava em valer menos a cada novo corte - medido isto em balas e sorvetes de água de poço naquele trem do subúrbio.
Até hoje sinto-me mal pensando em nomes como plano Verão, Bresser, Cruzado, Cruzado novo, e todas aquelas reformas monetárias tão típicas da nação que tinha que enfrentar o dragão da inflação e uma dívida externa impagável. A inflação hoje na casa dos 6% ao ano e a dívida externa já paga parecem demonstrar que mesmo os pesadelos dos economistas daquela época, assim como os carnavais - para felicidade do Itamar, tristeza da Lilian, também teriam um fim. 
O real cimentou uma estrada de tijolos amarelos da classe média rumo ao circuito das viagens internacionais, ao consumo de produtos importados a preços módicos, aos intercâmbios de herdeirinhos em terra de língua civilizada, ainda que mal falassem e mal escrevessem no idioma incivilizado. O real seria ainda o firme esteio da entrada pesada de quinquilharia concebida na costa oeste dos eua, montada na ásia, vendida na Big Apple e comprada nas ruas do país, que tinha então menos livrarias do que a Argentina. O real valeria uma urv - 2.750 cruzeiros - e nasceu no ano do rato. E seria a moeda mais longeva do período democrático. 
Não encararia um ringue sem adversários, no entanto. Seria duramente questionado nos meses após sua implantação, por economistas de muitas vertentes, pelo Pt, pelo Brizola, e seria a primeira vez na história brasileira desde de 1964 que os pobres do país teriam ganhos reais na distribuição de renda - palavras do Marcelo Néri - ministro da Dilma ao Valor. A nova moeda nasceu, o parlamentarismo nem a monarquia triunfaram, temos muitos partidos, muitos economistas e a renda hoje começa a ter padrões distributivos mais parecidos com o período anterior à ditadura - demorou apenas 50 anos. 
Mas o mais sinistro desta efeméride, meu caro, será o uso político que os jornais farão. Preparem-se. Especiais de vinte anos do real, entrevistas com Edmar Bacha, Gustavo Franco e FHC à vista ad nauseum. E claro a tentativa de culpar os atuais motoristas pelo atual estado do carro, naturalmente.
O real escondeu debaixo do tablet, debaixo do mac, debaixo da passagem de avião paga em 10, 12 vezes sem juros uma coisa no entanto: que todos as pessoas deste país pagaram muito por sua implantação com a perda contínua de poder aquisitivo em seus primeiros anos, que foram de arrocho aos salários dos servidores públicos, de controle estrito dos preços administrados, de privatizações de empresas públicas lucrativas ou não e de abertura comercial desenfreada, que com auxílio de um câmbio valorizado, do programa de sanitização dos bancos e do diferimento do pagamento da dívida externa conteve a inflação. O saldo disto é que hoje discutimos a inflação de forma civilizada e em termos mais modestos - embora mais nervosos. E se não compramos em vez do adidas o conga nacional, se temos salmão fresco, vinhos, sabonete, manteiga, queijos, cadarços de sapatos, enfeites de natal, computadores importados, carros chineses, bugigangas eletrônicas a preços pagos em 12 vezes no cartão - é para você pagar pouco por itens industrializados internacionais que hoje não produzimos. Não se trata de defender o gurgel, o skinny, o guaraná baré cola sabor uva ou o ki-suco. Trata-se de um raciocínio simples, embora aparentemente complexo. Tínhamos uma indústria pouco competitiva, tornamos os produtos importados mais baratos, valorizamos o câmbio com a taxa de juros e reservas internacionais, aumentamos a renda da população - favorecendo o consumo e a demanda - e criamos um cenário de controle da inflação através deste tripé: câmbio, abertura comercial, juros altos - o que muitas vezes significará endividamento. O resultado, embora seja mais gostoso culpar alguém, é de um processo que em 20 anos não favoreceu o crescimento do setor que tem os melhores termos de troca face a outros produtos da nossa pauta de exportações - bens industrializados frente a commodities em geral. Por isso, à medida que controlamos a inflação usando câmbio e taxa de juros, precisamos de mais austeridade - gastar menos porque o dispêndio extra tem de ser financiado com mais juros altos que atraiam capitais e que freiem a demanda interna. Tá confuso? Todos estamos, confusos e raivosos, procurando causas fáceis, bandeiras simples, guarda chuvas teóricos que nos coloquem antolhos confortáveis e mostrem a realidade em poucos e esmaecidos matizes. Talvez mais 20 anos e tenhamos melhores ideias sobre o rumo que tomamos. Talvez em 20 anos, nada disso faça diferença. O problema todo, meu caro, é o talvez.