Thursday 31 July 2014

Era inútil.

Em um aniversário longínquo, onde a adolescência que não era ainda presente, impulsionando frequentes crises de raiva, de incompreensão e a explosão de uma derme via hormônios, éramos uma família, na verdadeira acepção da palavra, destroçada. Convalescia no hospital mais um parente que logo faria o mesmo caminho de tantos outros e nos faria também reprisar antigos itinerários - da casa do quintal que diminuiu durante os anos que separavam a infância daquela fase futura - que todos esperariam que fosse, aliás, uma fase - para o lugar para onde ultimamente tanto convergíamos, e onde também sabia eu que o consolo seria familiar: o misto quente de pão de forma e a coca cola na birosca ao lado da loja de coroa de flores.
Despedaçada, desfolhada, perdendo galhos, estava cada vez mais aquela árvore da genealogia de pessoas pobres, naquela cidade onde ainda não se avizinhavam grandes eventos, que ficava no país, que no passado fora o do futuro e que no presente, naquela manhã, entre a insistente chuva fina e nosso mau temperamento, era assolado por políticos em campanha, como aquele que o homem de pele escura, advogado, antes polícia militar, agora deitado naquela caixa de madeira, solteirão de longos anos, apoiou.
O Albuquerque, esse era o nome do candidato a vereador no justo período ao final da abertura lenta, segura e gradual preconizada pelo último general a galgar o mais alto assento da república cheia de árvores e pessoas dizendo adeus, como dizia Quintana, era um colega desses que os solteiros às vezes têm e que nós, os do tronco principal daquele sobrenome, formado por tantas mulheres que choravam a partida de mais um - e que ainda chorariam mais - não conhecíamos.
Entre os sorrisos e os mimos que lotavam o fusca cor de goiabada dietética do homem que aquele grupo de suburbanos velava naquela manhã cinza, havia, naquela iniciativa de apoio desinteressado, prêmios por um ano de exploração de outros cafundós da zona norte da cidade: a vaga promessa de coisas que melhorariam - e talvez um cargo no gabinete almejado. 
As bolas de futebol, as bonecas e as espadas de plástico que acompanhavam carrinhos de mesmo material, eram todas imitações possíveis de comportamento adulto a que as crianças daquela região, todas pobres, umas pretas, outras não, que respiravam com dificuldade após as enchentes das águas daquele ano, tinham direito, bastando por isso, na troca de sorrisos, levar para casa um santinho, um panfleto, dos muitos que aliás lotavam o carro que descansaria em relativa paz, como meu tio, em um lugar que evitaríamos, mas que não poderíamos deixar de ir.
A pobreza, ainda que não miserável, daquela região onde se compravam galinhas vivas para almoço de domingo, e onde, ainda vez por outra, animais apareciam mortos no caminho entre a casa do pomar, que também diminuía ano a ano, e a escola que logo seria abandonada, não era explícita. Pobres mesmo eram os que não tinham casa, eram os que em durante a semana tocavam a campainha pedindo alguma comida que sobrasse. Nunca entendi porque não apareciam aos sábados e domingos, quando meu avô então cozinhava frangos, mocotó, língua e todas as carnes em promoção nos açougues do bairro vizinho. 
Nas encostas ainda pouco exploradas do morro atrás daquelas paredes brancas que nos separavam da vizinhança, residiriam, em poucos anos, muitos outros, que como esses, bateriam ao portão pouco antes do almoço dos dias de escola para reservar o possível das sobras da refeição que nós, um pouco mais afortunados, podíamos fazer. 
Naquela entrada do mais recente passeio ao local que teimava a vida em nos obrigar a frequentar não compareceu o Albuquerque. Meu tio iria à terra em caixa de madeira de cor mais clara que sua pele, em dia de céu mais escuro que a camisa de linho que nele fora vestida, cor semelhante a de nossa roupas, naquele último trajeto.
O Albuquerque não foi ao enterro, já disse. Nem nunca mais apareceu em nossa casa. As bolas de plástico e os santinhos ficaram acumulados em um canto do quintal, perto do fusca que em breve seria vendido a um outro solteirão do subúrbio que também jamais veríamos e, meses após, seriam levados por uma chuva torrencial na cidade em que fenômeno natural tornava-se tragédia e assunto em futuras campanhas políticas de outros homens que eu jamais veria a não ser em jornal como aqueles que usávamos para enxugar o fusca depois das lavagens de sábado quando meu tio ainda era vivo e solteiro.
Então, começou aquela chuva. 
Não era como a que pingava no enterro de mais um homem de meia idade, pele parda e levemente careca, mas de bigode e barba sempre bem cofiados e risada que terminava em assovio, como aquele que fazem os gatos em sua asma. Mas era como aquela que tinha chovido antes, lavando as roupas, móveis, geladeiras e casas e seus interiores por sua força. 
Aos quase sete anos, não sabia da inutilidade dos afetos construídos com pedaços de plástico que me permitiam imitar a vida que era então tão distante e que não parecia poder ser algum dia a minha. Só via, no fundo do quintal de ladrilho e de parede de chapisco, as bolas, bonecas, carrinhos, naquelas sacolas de supermercado, encostados, à espera de mais um dia de campanha que ali, então, já não mais havia. 
Quando a água subiu, barrenta, como cor de toddy, e sujou o muro branco que dividia aquela casa de todas as outras da rua, e que fazia daquela casa o meu mundo, entendi. Era inútil, o tempo, as bolas, os carrinhos, o fusca, tudo era inútil. 
Vi quando os carrinhos passaram boiando em suas embalagens plásticas e quando as bolas de futebol foram tragadas pelo ralo que os vizinhos abriam na rua embaixo da chuva, com a enchente na cintura, à base de enxada, pá, gritos de bota as crianças dentro de casa e desespero. Ali, enquanto minha avó cobria os espelhos e relampejava, enquanto as casas mais baixas da rua se inundavam, enquanto os outros meninos saíam com água pela cintura, quando o trem da estação já não passava, eu sabia com certeza de que nenhuma das bolas, dos brinquedinhos, iam adiantar e que ninguém se importava. 
Fiquei parado com os pés na água barrenta, vi uma cobra d'água e esperei ali, sentado, na porta dos fundos daquela casa alta, naquela rua de bairro de nome composto, que a chuva se fosse. Demorou muito, mas mesmo molhado, e chance de gripar, fiquei ali esperando. O tempo para o alto de meus 6 anos e meio era imensurável. 
O sol, muito tempo depois saiu, a enchente baixou e apareceram as paredes coloridas de marrom nescau, o jardim com o abacateiro caído, com o espinafre cheio de lama e sapos para todo lado. A água não invadiu a casa, no entanto, apenas destruiu o passatempo do avô que teimava em não se aposentar, e poderia ter afogado os galos e galinhas daquele quintal, se tivesse chovido um ano antes, quando ele ainda os tinha.
Como veio, a chuva, ela se foi. Como tudo naquelas horas de nós, de torcida, nós - aquelas pessoas pobres daquele bairro esquecido com uma igreja, um botequim, meus seis amigos de escola, bandidos que corriam sobre as lajes e telhados e, em que novamente as ruas ficariam lamacentas, intransitáveis, e, ainda, onde depois o barro endureceria, viraria poeira, que nos faria chorar sem tristeza quando os carros passassem, empoeirando os lençóis nas cordas, as camisas de colégio público, a televisão da sala - a chuva e, seu futuro, o barro, éramos a confirmação do que já conhecíamos, todos, há uma vida de pobreza nos mais velhos, há seis anos e meio de dia após dia até ali para mim. Chuva, barro, olhos empoeirados, nós pobres éramos íntimos. Nos encontraríamos com certeza, embora não pensássemos nisso, em breve. Eu sabia, todos sabíamos, e enquanto as casas ficassem de pé, elas, se vivas, seriam testemunhas. Não sendo, não podia dizer que também sabiam da inutilidade - mas seriam palcos de nosso espetáculo pobre.
O Albuquerque, porém, aquele, eu soube depois, ele não foi eleito.

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