Friday 30 May 2014

Era tudo culpa do Raul.

Quando meu avô morreu após 21 dias no hospital enfrentando uma leucemia que reduziu o peso de um homem de quase 100 quilos a pouco mais de 70, minha casa se tornou uma cripta. Minha avó - alheia ao que acontecia - começava a demonstrar o sinais da esclerose que se aceleraria nos próximos anos, mas ainda demoraria uma década para levá-la definitivamente do nosso mundo para o cemitério no subúrbio onde todos os meus outros parentes estão enterrados. Meu tio mais moço, que pouco mais tarde iria para o mesmo endereço, decidia quais seriam os próximos passos daquela família àquela altura em franco desmantelo.
Não éramos especiais, era o subúrbio que nos fazia comuns no fim daqueles anos 80 de conversas telefônica inaudíveis, de ombreiras na tv e cocaína nos camarins. Eu não sabia de nada daquilo. Ocupava-me de uma pré-adolescência que não respeitava luto - música e garotas já me interessavam em grande medida e ocupariam logo o espaço da matemática - confinando meu avô às lembranças da infância mais distante naquela casa de bairro pobre que custou pouco mais de um telefone para ser construída, na década em que carinhosamente o governo errava tudo que tentava.
O plano cruzado, o Bresser, o plano cruzado 2, a queda do muro, naquele dia passavam longe de ser problemas naquela cozinha de azulejos até o teto - era mais fácil de limpar - e de janelas que tremiam na passagem do trem. Era uma casa ampla, espaçosa, iluminada, típica de um bairro sem graça, sem padarias, sem mercados, sem farmácia, e que por isso me obrigava a comer pão dormido tantas e tantas manhãs. Tinha uma horta na frente cultivada por todos nós os moradores daquele endereço, compulsoriamente, ao sábados com direito a encontros semanais com sapos e pererecas e a entrega de estrume por um homem em uma carroça puxada por um cavalo, ambos conhecidos por meu avô. Homem e cavalo bem indiferentes, diga-se.
Naquele espaço quadrado, sentados à mesa, o tio que viraria vizinho de meu avô em Irajá, cova de número que esqueci, mas que foi usada diligentemente por todos os parentes da família, na última fé daquele dia em que chovia, na banca de bicho do lado da loja que vendia coroa de flores. Ninguém ganhou, mas mais uma vez mais um número místico seria tentado na cabeça, cercado no grupo, com a milhar invertida e em mais combinações que os inventores e aperfeiçoadores daquele jogo especialista em tosar os bolsos pouco recheados de pessoas pobres criavam e criariam nos próximos anos. Éramos como outros pobres e tínhamos uma estranha fé em jogos com números.
Era quase de noite, na mesa da cozinha, agora sem vapor panela esquentando comida, que decidi abrir uma janela naquele dia fúnebre. Fui ao quarto, liguei o som, coloquei o disco e na terceira faixa, já deitado um pouco mais no escuro, com a cabeça apoiada no travesseiro, ouvi a reclamação que vinha do conselho de sábios: Lá vai ele ouvir o diabo desse Raul Seixas.
Era sempre Raul. Era o Raul sempre.

Monday 26 May 2014

Câncer do ano do rato.

Daqui a uns dias, comemoram-se os 20 anos do primeiro momento de circulação do objeto que hoje dá nome e face ao intercâmbio entre nossas horas de trabalho e a sorte do patrão ter nascido patrão. Serão 20 anos deste meio de troca canceriano - nascido em 1 de julho de 1994 - e que nos permitiu nos acostumarmos ao não óbvio: preços que flutuam menos que os ganhos de nossos contracheques - holerite, no paulistês -, nada de congelamento de preços, nunca mais nenhum confisco financeiro semelhante ao que sofreram os hermanos - e nós também, diga-se a verdade. 
Ainda hoje é engraçado pensar naquele momento em que você ganhava em uma moeda, recebia em outra cujas cédulas pagavam o seu chopp e as contas - era a Urv. Todo mês via seu carrinho levar para casa os então campeões do plano que catapultaria a tucanidade paulista a 2 mandatos na cadeira mais alta da república: o frango, o iogurte e o chuchu - que atingiu o valor de 1 centavo por quilo na nova moeda, naquele mês em que seríamos campeões inclusive da Copa do Mundo de Futebol. 
Tudo isto começaria no fim último ano do mandato do presidente que começou vice, passou a titular, topete impávido entre os dois momentos, e ficou mais célebre por outros cabelos - não seus, mas os da moça de sobrenome com leve menção à pelugem que exibiria ao lado do então manda brasa mor do país na maior festa da terra. Célebre imagem, aliás. O que teve então o real de tão diferente de tudo que havia aqui? Com o plano, não haveria mais a tristeza infantil habitual com os cortes de três zeros que faziam milhões de cruzeiros economizados em porquinhos virarem milhares, após pronunciamentos solenes, naquele espaço de tempo rarefeito entre novela das nove e jornal das oito. O montante final nos cofrinhos, ao fim de cada novo pacote, sempre teimava em valer menos a cada novo corte - medido isto em balas e sorvetes de água de poço naquele trem do subúrbio.
Até hoje sinto-me mal pensando em nomes como plano Verão, Bresser, Cruzado, Cruzado novo, e todas aquelas reformas monetárias tão típicas da nação que tinha que enfrentar o dragão da inflação e uma dívida externa impagável. A inflação hoje na casa dos 6% ao ano e a dívida externa já paga parecem demonstrar que mesmo os pesadelos dos economistas daquela época, assim como os carnavais - para felicidade do Itamar, tristeza da Lilian, também teriam um fim. 
O real cimentou uma estrada de tijolos amarelos da classe média rumo ao circuito das viagens internacionais, ao consumo de produtos importados a preços módicos, aos intercâmbios de herdeirinhos em terra de língua civilizada, ainda que mal falassem e mal escrevessem no idioma incivilizado. O real seria ainda o firme esteio da entrada pesada de quinquilharia concebida na costa oeste dos eua, montada na ásia, vendida na Big Apple e comprada nas ruas do país, que tinha então menos livrarias do que a Argentina. O real valeria uma urv - 2.750 cruzeiros - e nasceu no ano do rato. E seria a moeda mais longeva do período democrático. 
Não encararia um ringue sem adversários, no entanto. Seria duramente questionado nos meses após sua implantação, por economistas de muitas vertentes, pelo Pt, pelo Brizola, e seria a primeira vez na história brasileira desde de 1964 que os pobres do país teriam ganhos reais na distribuição de renda - palavras do Marcelo Néri - ministro da Dilma ao Valor. A nova moeda nasceu, o parlamentarismo nem a monarquia triunfaram, temos muitos partidos, muitos economistas e a renda hoje começa a ter padrões distributivos mais parecidos com o período anterior à ditadura - demorou apenas 50 anos. 
Mas o mais sinistro desta efeméride, meu caro, será o uso político que os jornais farão. Preparem-se. Especiais de vinte anos do real, entrevistas com Edmar Bacha, Gustavo Franco e FHC à vista ad nauseum. E claro a tentativa de culpar os atuais motoristas pelo atual estado do carro, naturalmente.
O real escondeu debaixo do tablet, debaixo do mac, debaixo da passagem de avião paga em 10, 12 vezes sem juros uma coisa no entanto: que todos as pessoas deste país pagaram muito por sua implantação com a perda contínua de poder aquisitivo em seus primeiros anos, que foram de arrocho aos salários dos servidores públicos, de controle estrito dos preços administrados, de privatizações de empresas públicas lucrativas ou não e de abertura comercial desenfreada, que com auxílio de um câmbio valorizado, do programa de sanitização dos bancos e do diferimento do pagamento da dívida externa conteve a inflação. O saldo disto é que hoje discutimos a inflação de forma civilizada e em termos mais modestos - embora mais nervosos. E se não compramos em vez do adidas o conga nacional, se temos salmão fresco, vinhos, sabonete, manteiga, queijos, cadarços de sapatos, enfeites de natal, computadores importados, carros chineses, bugigangas eletrônicas a preços pagos em 12 vezes no cartão - é para você pagar pouco por itens industrializados internacionais que hoje não produzimos. Não se trata de defender o gurgel, o skinny, o guaraná baré cola sabor uva ou o ki-suco. Trata-se de um raciocínio simples, embora aparentemente complexo. Tínhamos uma indústria pouco competitiva, tornamos os produtos importados mais baratos, valorizamos o câmbio com a taxa de juros e reservas internacionais, aumentamos a renda da população - favorecendo o consumo e a demanda - e criamos um cenário de controle da inflação através deste tripé: câmbio, abertura comercial, juros altos - o que muitas vezes significará endividamento. O resultado, embora seja mais gostoso culpar alguém, é de um processo que em 20 anos não favoreceu o crescimento do setor que tem os melhores termos de troca face a outros produtos da nossa pauta de exportações - bens industrializados frente a commodities em geral. Por isso, à medida que controlamos a inflação usando câmbio e taxa de juros, precisamos de mais austeridade - gastar menos porque o dispêndio extra tem de ser financiado com mais juros altos que atraiam capitais e que freiem a demanda interna. Tá confuso? Todos estamos, confusos e raivosos, procurando causas fáceis, bandeiras simples, guarda chuvas teóricos que nos coloquem antolhos confortáveis e mostrem a realidade em poucos e esmaecidos matizes. Talvez mais 20 anos e tenhamos melhores ideias sobre o rumo que tomamos. Talvez em 20 anos, nada disso faça diferença. O problema todo, meu caro, é o talvez.