Quando meu avô morreu após
21 dias no hospital enfrentando uma leucemia que reduziu o peso de um homem de
quase 100 quilos a pouco mais de 70, minha casa se tornou uma cripta. Minha avó
- alheia ao que acontecia - começava a demonstrar o sinais da esclerose que se
aceleraria nos próximos anos, mas ainda demoraria uma década para levá-la
definitivamente do nosso mundo para o cemitério no subúrbio onde todos os meus
outros parentes estão enterrados. Meu tio mais moço, que pouco mais tarde iria
para o mesmo endereço, decidia quais seriam os próximos passos daquela família
àquela altura em franco desmantelo.
Não éramos especiais, era
o subúrbio que nos fazia comuns no fim daqueles anos 80 de conversas telefônica
inaudíveis, de ombreiras na tv e cocaína nos camarins. Eu não sabia de nada
daquilo. Ocupava-me de uma pré-adolescência que não respeitava luto - música e
garotas já me interessavam em grande medida e ocupariam logo o espaço da
matemática - confinando meu avô às lembranças da infância mais distante naquela
casa de bairro pobre que custou pouco mais de um telefone para ser construída,
na década em que carinhosamente o governo errava tudo que tentava.
O plano cruzado, o
Bresser, o plano cruzado 2, a queda do muro, naquele dia passavam longe de ser
problemas naquela cozinha de azulejos até o teto - era mais fácil de limpar - e
de janelas que tremiam na passagem do trem. Era uma casa ampla, espaçosa,
iluminada, típica de um bairro sem graça, sem padarias, sem mercados, sem
farmácia, e que por isso me obrigava a comer pão dormido tantas e tantas
manhãs. Tinha uma horta na frente cultivada por todos nós os moradores daquele
endereço, compulsoriamente, ao sábados com direito a encontros semanais com
sapos e pererecas e a entrega de estrume por um homem em uma carroça puxada por
um cavalo, ambos conhecidos por meu avô. Homem e cavalo bem indiferentes,
diga-se.
Naquele espaço quadrado,
sentados à mesa, o tio que viraria vizinho de meu avô em Irajá, cova de número
que esqueci, mas que foi usada diligentemente por todos os parentes da família,
na última fé daquele dia em que chovia, na banca de bicho do lado da loja que
vendia coroa de flores. Ninguém ganhou, mas mais uma vez mais um número místico
seria tentado na cabeça, cercado no grupo, com a milhar invertida e em mais
combinações que os inventores e aperfeiçoadores daquele jogo especialista em
tosar os bolsos pouco recheados de pessoas pobres criavam e criariam nos
próximos anos. Éramos como outros pobres e tínhamos uma estranha fé em jogos
com números.
Era quase de noite, na
mesa da cozinha, agora sem vapor panela esquentando comida, que decidi abrir
uma janela naquele dia fúnebre. Fui ao quarto, liguei o som, coloquei o disco e
na terceira faixa, já deitado um pouco mais no escuro, com a cabeça apoiada no
travesseiro, ouvi a reclamação que vinha do conselho de sábios: Lá vai ele
ouvir o diabo desse Raul Seixas.
Era sempre Raul. Era o Raul sempre.
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