Tuesday 24 June 2014

O mundo em 7 ou 6 colunas

Quando eu era pequeno - não que hoje eu seja grande - não existia internet. Juro. Aliás, não havia um monte de coisas: celular, televisão a cabo, pouca inflação - havia muita. E isto tudo foi há pouco mais de 20 anos.
Jornal era coisa de fim de semana - no distante bairro com dois nomes, onde não havia assinatura, também não havia banca. Em um tempo onde ecologia não era assunto - o jornal já tinha direito a reciclagens: fundo de gaiola do passarinho, embrulho de peixe na feira e de frango no aviário aos domingos, chapéu, gaivota, aviãozinho, rabiola, barco e, função principal, portador de novidades e companheiro de descobertas de um mundo que ficava do portão para lá, além do jardim, depois da estação que levava-nos do subúrbio em que faltava água e luz para o deslumbramento da Central, a dos meninos de rua cheirando cola, da Presidente Vargas, do carnaval da Rio Branco, e às vezes para Madureira, para a feirinha da Pavuna, onde, sabe-se, houve uma grande confusão.
Naquele tempo, se parafraseasse o livro mais vendido de todos os tempos, inclusive daquele, o Brasil, em ritmo de democratização e em clima de ressaca moral futebolística e política, ou melhor, o Brasil que eu via e lia nos jornais naqueles fins de semana e na tv de 6 canais - podendo chegar a 7 com ajuda da geografia e do bombril - já tinha muitos mi(ni)stérios. Tinha inflação bem pior que a atual e aparentemente irrefreável - um dragão, dizia-se, que comeria o valor das minhas moedinhas tal qual comunistas deviam fazer então com os meninos de outros subúrbios de nomes estranhos no tal Leste Europeu. Ali, portanto, éramos não-comunistas.
Havia uma dívida externa impagável - e existiam planos de quitá-la, um deles, consistia em todo mundo no País dar uma grana, por um tempo, a fim de que nos livrássemos do espeto. O que poderia ser revolucionário - a primeira ação de crowdfunding da história brasileira e com motivo nobre - nunca deixou de ser ideia, apenas ideia. Corrupção e corruptos existiam, grupos de extermínio - e suas consequências em preto, branco e vermelho - soma da cor dos jornais e das patrulhinhas da pm na óbvia conjunção - faziam da Baixada um dos lugares mais violentos do Planeta.
O leão - do imposto de renda - rugia todos os anos como hoje ainda o faz, o comunismo andava desacreditado, mas temido - como hoje também está - e resistia em alguns lugares - como hoje sobrevive. Entre eles, era vivo no maior país do mundo, o que tinha o maior dos nomes e por isso, nos títulos dos jornais, era conhecido por sua sigla. Não era um mundo pacífico, e mesmo aquele nome, que provocava acaloradas discussões não apenas nas brincadeiras de criança, mas entre os adultos, intrigava a mim e tanto outros meninos quando o via nos uniformes dos vermelhos nas Olimpíadas - CCCP, não devia ser URSS?
Ainda nos anos em que fui pequeno, estranhava no jornal a existência de um ministério da fazenda e outro da agricultura. Já então acreditava que a redundância em nossas instituições era contraprodutiva. Como agricultura sem fazenda? Ficava então imaginando onde ficaria a tal Fazenda Nacional. Como seria? Teria cavalos? Bois? Plantaria bananas? Devia ser este o lugar da agricultura, só podia ser.
Achava as propagandas de camisinha estranhas - por que falar tanto de uma doença que podia ser prevenida com uma peça de roupa que todo mundo tinha em suas gavetas? Durante uma época, achava que AIDS - outra sigla dos noticiários - era uma espécie de gripe. Como a friagem, era evitável usando uma camisa - pequena que fosse. 
A imprensa chegou a chamar a doença de câncer gay - esta nomenclatura, felizmente, em algum momento, foi abandonada. Do alto dos meus poucos anos de idade, restava-me a ideia de que bastava botar a camisinha e todos estaríamos protegidos daquela friagem. 
Foi um verão quente e usar camisinhas - umas de heróis, outras de boutiques, todas feitas no Brasil, no entanto - só me fez suar mais. Hoje entendo que naquela ordem - botar camisinha, suar, evitar uma doença - talvez residisse de forma primária um mundo futuro bem semelhante - onde se usava camisinha, se suava, se evitava doenças, mas o qual o jornal não muito bem explicava. Suaria então naquele verão pretérito. E em outros, já possuidor das reais intenções daquelas propagandas.
Das muitas confusões possíveis, falava-se ainda dos generais saudosos e de bandidos que trocavam tiros com polícia pela fezinha remunerada nos subúrbios - na época, o grande inimigo não eram os traficantes, mas os bicheiros, que além de patrocinarem escolas de samba, times de futebol, deputados e vereadores, campanhas políticas, clubes, festas, prefeituras, subornarem policiais semanalmente, possuíam fortalezas intransponíveis em subúrbios menos idealizados do que o da minha infância. 
Cada um tem a memória, a idealização e o subúrbio que merece ou que pode se dar. Nas fortalezas do bicho, mostradas nos jornais, em fotos abertas em 7 colunas, me intrigava como aqueles moços sentados em carteiras escolares nas esquinas da zona norte podiam ter tanto dinheiro. Apontador de bicho, para o alto dos meus poucos anos, devia ser profissão muito rentável. Mas eu queria ser bombeiro. Ou motorista de trator. Ou ambos.
No hoje, ainda são muitas as semelhanças com aqueles dias que sobrevivem nas minhas turvas memórias criadas do ponto de vista do menino cuja altura pouco passava a do tampo da mesa de jantar, que andava de bicicleta de aro 10 no quintal de imensos 100 metros quadrados, que caminhava 1,5km para a escola ou para a padaria, que inexistia no subúrbio, onde, independente de idealização, não havia comércio - a não ser um bar que só vendia cachaça e em que havia muitos homens de olhos baços, vermelhos, comentando as revistas de mulher pelada - eram assim chamadas as publicações adultas.
Uns anos à frente, a história mostraria que apenas nas páginas de revista que contavam os próximos capítulos das novelas pode se antecipar o futuro. Um muro que iria cair e unir dois países, a transformação de uma união de repúblicas em comunidade e Estados independentes, a primeira eleição direta em vinte e tantos anos - o escolhido naquela oportunidade, ao contrário do antecessor, não usaria bigode, usaria gel, mas também tinha como experiência pretérita o governo de um dos estados mais pobres daquele país de 3° mundo. Naquela época, terceiro mundo, aliás, não era referência à nossa posição no sistema solar, mas à nossa localização na escala evolutiva natural dos países. Era o título que nos definia então. 
Hoje, neste dia 24 de junho de 2014, quando realiza-se a segunda Copa do Mundo de Futebol no Brasil, imediatos 64 anos após a primeira, diga-se, a história revela-se traiçoeira novamente. Não pelos feitos do futebol, imprevisível por natureza, sujeito a caprichos próprios, às vontades e às veleidades dos atletas milionários e da entidade que congrega a paixão de bilhões de apaixonados e o dinheiro de outros tantos que nem tanto gostam de futebol. Hoje, é o dia em que, após décadas de serviços prestados, uma das grandes continuidades do nosso passado remoto e do não tão distante também, o imortal José Sarney desistiu de sair candidato a um cargo eletivo. Há 20 e poucos anos, o presidente tinha bigodes, referia-se a quem não o elegeu como brasileiros e brasileiras, éramos tricampeões de futebol, tínhamos uma das maiores dívidas externas do mundo, e estávamos em crise eterna na década perdida. Nosso atacante, no entanto, não tinha um chumaço de pelos entre nariz e lábios. Hoje, esta aí o bigode no atleta, mas não no nosso presidente - que aliás, é presidenta. O tempo faz feng shuis imprevisíveis em pelos corporais, vê-se. Nossa dívida se foi, a inflação mantém-se em medida infinitamente inferior à do passado, sediamos uma copa, sediaremos uma olimpíada, não existe mais o Conga nacional, a sorveteria Sem Nome, Dragão Chinês, a cerveja malt 90, somos pentacampeões mundiais de futebol e não nos sentimos mais como parte integrante do álbum de figurinhas Terceiro Mundo. Se é que ele existe.
E aí o Sarney se aposenta. 
Como na música, mas contra as memórias das minhas previsões de futuro naquela casa de subúrbio com janela para o mundo impressa em papel, com fotos em preto e branco, cadernos de 7 colunas e com tinta que sujava as mãos, devo dizer: I have to admit, it's getting better, it's getting better, all the time.

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