Friday 20 June 2014

Para ser craque

É preciso um bando de coisas. Mas, se algumas são adquiríveis durante a vida pré-craque, outra, talvez a mais importante, é de fábrica.
Há, no grande jogador de futebol, e talvez em todo grande atleta, uma esperteza, uma iluminação prévia à jogada, à vida, quem sabe, que o permite, se não, antever o próximo passo, ao menos reconhecer a familiaridade do presente. Para o grande jogador, o imponderável é uma ilusão. Não há tentativa, há o feito, diria Yoda.
Esta clarividência não é culpa da repetição exaustiva típica de uma vida assim. Embora a ideia de talento seja um tanto complexa - pré-disposição natural, item de fábrica, para um ato aleatório - chutar uma bola, executar um cruzamento ou ser dentista - talento, do ponto de vista biológico é difícil de se prever e em geral complexo de explicar.
Mas sabe-se que uma vida de repetições - bola após bola, cabeçada após cabeçada, calçar as chuteiras, aquecer, alongar, correr, suar, ver, tentar, não conseguir, repetir, e no fim, a solidão do vestiário, o corpo sob a água, o ponto da exaustão plena, do pensamento zero - o craque não apenas antevê a jogada, não apenas advinha o caminho possível e provável da bola, do adversário. Inconscientemente, ele conhece o caminho certo. Se aquele for o dia, e para o grande jogador, muitos são esses momentos, ele limpa a jogada, escapa ao zagueiro, arma o bote certeiro e passa com leveza e graças simuladas - sabe-se, é o auge de seu esforço.
É feito de certeza natural nele: o caminho exato naquele único momento, que se define o imponderável - o sucesso familiar do passe na medida, do lançamento inacreditável, do chute destemido que desbrava a grama e morre na rede, da defesa espetacular, do desarme no último momento, do drible desconcertante.
Em um Milla, em um Romário, em um Didi, em um Lineker, em um Beckenbauer, em um Rivaldo, em um Maradona, o sorriso após a jogada correta não era surpresa com o sucesso, era a familiaridade com o óbvio, vitória intimamente conhecida e antecipada da forma única que só assim aconteceria: o movimento preciso, de tempo certo, em que se desenha a chance imperdível para ele. O craque não advinha o caminho, ele sabe, ele é o caminho.
Quando erra, quando não é um daqueles muitos dias em que ele é craque, sabe-se, houve uma desconexão entre fato e ato, entre saber e fazer. Não se tem registro de um Pelé, de um Zico, de um Jairzinho, de um Bergkamp, de um Banks a culpar a bola, o vento, a grama, o almoço, o hotel, talvez o juiz, mas nunca de suas velhas conhecidas parceiras, pelo dia de não. O craque não erra pelo chuveiro ruim no vestiário, pela grama carcomida na zona do agrião. Quando falha o craque, o ponderável triunfa. Ou outro craque sobressai. Como Zidane, nas copas de 98, 2006, sobretudo contra a seleção do uniforme canarinho, ela também, coalhada de grandes craques - à exceção daquele dia onde desenhou-se a tragédia imprevisível a princípio.
O craque, muitos dizem antever no menino, na menina. Muita gente jura que sabia quem se tornaria Garrincha naquele primeiro treino em general Severiano. Aliás, muitos dizem que estavam presentes naquele dia. Imprecisões à parte, sabe-se o óbvio: o craque se forma na íntima relação que mantém com o futuro e com o presente contínuo. Se se pode antever seu nascimento, este só se confirmará nos muitos momentos de plena e consolidada clarividência nos gramados da vida de eterno presente: treinar, chutar, repetir, errar, tentar, correr, alongar, aquecer, desaquecer, alongar, tentar, acertar, a solidão do erro, a congratulação no vestiário, o apupo das arquibancadas. 
Ser craque é viver no conto em que sempre é véspera de natal. No seu caso, no entanto, sempre é domingo, sempre é dia de vitória, sempre haverá o imponderável, mesmo quando os resultados não são favoráveis. É fazer, conseguir, tentar, repetir, congratular e sorrir. Vida de craque, mesmo na solidão dos dias de não, é saber que em algum momento, como em Casablanca, voltará a sentir a sensação familiar do instante imediato após conquistar o sucesso escorregadio.
Para o craque, a vida é um eterno presente. 
Para nós, mortais, sua existência se comprova no passado e se consolida no futuro. Craque tem de fazer e muito até o dia em que recebe seu título. 
Que, para ele, é o dia de sempre.

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