Wednesday 11 June 2014

Minha culpa.

Uma dia, na redação, um editor chegou para mim depois de eu voltar com algumas fotos da praia cheia e perguntou se não tinha nenhuma de uma "gostosa" para dar na primeira página: "uma dessas do posto nove". 
Outra vez antes de sair para uma pauta de economia fui avisado pelo editor da vez que não devia fotografar pretos: sabe como é o jornal, né? Aquele era o jornal das esquerdas do país.
Um dia, em um ano de eleição, o editor me pediu para ir para a rua fazer fotos de militantes agitando bandeiras dos partidos. Quando voltei, ele reclamou que eu não tinha armado uma foto com militantes de vários partidos no mesmo local - eles estavam separados.
Em outro dia em um jornal, após a queda de um avião, recebi um e-mail da então chefe me dizendo que não precisava fazer as fotos dos parentes das vítimas chorando na janelas do aeroporto, que deveria tentar fazer retratos identificados de cada um deles pois o jornal iria usá-los. De fato, o jornal devia ser a Caras e não o maior jornal do País. E de fato seria ok em uma tragédia onde morreram 144 pessoas ficar buscando nome e sobrenome de um número gigantesco de parentes a fim de que o jornal fizesse seu álbum de figurinhas. 
Em outra vez, o editor da revista de SP para quem eu frilava me ligou reclamando das fotos para uma matéria sobre sono. Ele disse que os personagens das fotos - entrevistados por telefone por um repórter - pareciam "pobres" e perguntou porque eu não desisti da foto já que eles não eram o "perfil" da publicação. Respondi qualquer coisa e nunca mais trabalhei para eles.
Em outra ocasião, fotografei um escritor e na volta à redação conversei com a chefe que me disse que era "bastante amiga" do camarada. Em muitas outras vezes na volta à redação após fotografar outra pessoa, aquele mesmo chefe me confirmaria "que era bastante amigo" de cada fulano que eu tinha fotografado. Aparentemente, o jornal tinha um quê de facebook numa época em que a rede social sequer sonhava em aportar aqui.
Em outra vez, um editor, no meio de uma operação policial bastante tensa, me ligou e pediu que eu saísse do local onde estava para procurar um camarada que tinha levado três tiros e provavelmente morria em algum dos hospitais da região. Naquele dia, eu era o único fotógrafo do jornal naquela favela. Assim, no dia seguinte, a foto da primeira página era a de uma agência internacional - aconteceu uma hora depois de eu ter sido deslocado para passar 2 horas na porta do hospital tentando uma entrevista com um camarada que tinha levado no mínimo 3 tiros. Ele sairia do hospital ou morreria uma semana depois. No dia seguinte, o editor me cobrou porque eu não tinha a foto da agência internacional.
Um dia houve uma enchente que alagou 3 bairros na Baixada Fluminense, desabrigando umas 3000 pessoas. Naquele dia, eu tinha 3 retratos a fazer e, enquanto as coisas aconteciam na Baixada, com o jornal, o editor e eu sabendo disso, fazia os retratos calmamente na zona sul do Rio. Ao fim das fotos, o editor me instruiu para que fosse à Baixada - "a situação parece que piorou" - recuperar a história que se desenvolvia desde a madrugada. O jornal não mandou repórter. Dei sorte, encarei água da inundação até o peito, perdi um ipod molhado, fiquei absolutamente encharcado e emplaquei uma foto exclusiva na primeira página. O repórter sequer saiu da redação - apurou tudo por telefone.
Em outra vez, o jornal decidiu que não daria mais fotos comprometedoras de candidatos para não ser acusado de favorecer um dos lados da campanha. Nada fez sobre as matérias pouco equilibradas ou mesmo se preocupou em dar igual espaço aos candidatos. Os fotógrafos adoraram trabalhar em uma campanha política onde sabiam que não importa o quanto fosse boa a foto, ela não seria publicada. Foi um grande estímulo.
Em outra campanha, um dos candidatos a presidente foi atingido por uma bolinha de papel em uma caminhada num "reduto típico do partido que estava no poder" - palavras usadas à época. Fiz as fotos - do momento exatamente posterior à bolinha acertá-lo - porque passei meia hora com cotovelo do segurança do candidato no meu pescoço enquanto caminhava de costas com a máquina na altura dos olhos acompanhando o distinto. Após enviar as fotos, recebi uma ligação do editor de fotografia me cobrando fotos mais leves, que não mostrassem tanto a confusão, o turbilhão e o que de fato acontecera. O jornal achava que aquilo não tinha sido nada demais. O editor estava a 400 km de distância da história da bolinha de papel, tinha acompanhado pela tv e disse que a redação - leia-se os editores acima dele - não se impressionava com a história e queria fotos "menos do assunto". No dia seguinte o jornal publicou uma foto de um cara que sequer estava ali quando a confusão aconteceu. A minha foto, coincidentemente foi parar na capa do jornal do colega que não estava lá - as agências venderam as fotos.
Aquele foi o assunto de jornais, tvs e todos os demais veículos naquele dia e nos seguintes. No domingo à noite ainda restou ao programa de maior audiência do fim de semana convocar um perito para explicar se de fato algo pior ou apenas uma bolinha de papel havia atingido o presidenciável. De fato, o assunto era pouco importante e deveria ser publicada uma foto leve da notícia, creio hoje.
Uma vez, durante um jogo eliminatório da Copa do Mundo em que a seleção enfrentaria a Holanda, o jornal pediu que eu fizesse uma espécie de time lapse da torcida gringa em um hotel onde ela se reuniria para assistir à partida. Naquele dia, o Brasil foi eliminado e a foto da primeira página foi feita em Copacabana, no Fifa Fan Fest. Por uma agência. Eu fiz o time lapse pedido que nunca foi publicado. Ainda ouvi cobrança do editor da vez.
Na mesma copa, após um dos primeiros jogos da seleção fiz uma série de fotos dos torcedores no Fan Fest. Uma delas mostrava uma criança de uns 9 anos nos ombros do pai comemorando um gol. No dia seguinte o jornal para quem eu trabalhava deu a foto exatamente da mesma menina só que feita por uma agência. Quando perguntei porque a minha não tinha sido usada descobri que o editor que estava cuidando da primeira página tinha sido deslocado para cuidar da capa do caderno de esportes e que esqueceu as minhas fotos em um espaço que não era olhado por ninguém. O jornal no fim das contas pagou duas vezes pelo mesmo produto. Mas ninguém foi cobrado.  
Em outra vez, ouvi de um editor de fotografia, ao saber que durante uma onda de ataques a ônibus do Rio, um fotógrafo do jornal conseguiu fazer fotos de um dos ônibus incendiados, que ele publicaria a foto de um leitor que tinha um coletivo pegando fogo em Botafogo: "o que importa é a Zona sul". A foto do leitor, obviamente tinha qualidade infinitamente pior e menos informação - era necessária uma legenda para saber onde tinha sido feita. Mas estava geograficamente correta. A do colega era geograficamente incorreta - tinha sido feita no subúrbio. "O que importa é a zona sul" até hoje ecoa na minha cabeça.
Em outro momento, lembro de um editor explicando ao fotógrafo que "só tem duas coberturas importantes no jornal: futebol e carnaval". O Brasil estava nos anos FHC, me lembro agora.
Nada disso me fez crer que o jornalismo é pouco relevante. Mas é muito desorganizado apesar da aparência corporativa. No entanto, tudo isto me fez ter mais certeza de que ele é o exato retrato do que se faz coletivamente dentro das redações. Todos os dias erramos. Jornalistas e fotógrafos fazem matérias e fotos péssimas e boas. Editores fazem escolhas péssimas e outras melhores. No entanto, o agregado de erros sempre parece ser sintoma dos rumos de uma profissão em que salários perdem poder de compra, não se fazem greves, diminuem as vagas de trabalho ano a ano, a circulação dos meios impressos cai e há pouca ou nenhuma crítica sobre a relevância do que é produzido - ou sobre como é produzido.
O jornalismo é a única atividade em que o homem tem certeza que não precisa mais melhorar o processo de produção, apenas precisam melhorar os profissionais.
Ser misógino - a palavra viadinho ecoa não apenas nas redações - racista, sexista, preconceituoso ou ter demofobia não é comportamento exclusivo das mesas onde é manipulada - em seu sentido mais direto - a informação que chega a cada um de nossos lares. Todos cometem erros, há ainda muito a aprender e pouco tempo. 
Pode-se dizer que a imprensa é retrato da sociedade que a mantém. Se assim é, as tiragens cadentes de jornais e revistas - enquanto tendência histórica, não no ano a ano - o violento aumento do lucro de jornais com verbas publicitárias - que ora comemora-se - a segmentação da linha editorial pelo perfil do leitor - branco, dois filhos, católico, um cachorro, heterossexual - os baixos salários e a inexistência de greves - a mitologia do tio Patinhas é forte no setor e é reforçada pelos astronômicos salários de empresários do jornalismo - além do total desrespeito às leis consolidadas por Vargas nos anos 40 do século passado, talvez reflitam um pouco mais do que a sociedade em que vivamos. Talvez sejam em si retrato da sociedade em que queremos de fato viver. Ou talvez, a aparente inviabilidade econômica contraditória em que jornais hoje vivem mergulhados - mais verbas de publicidade, menos empregos e credibilidade - seja retrato de que eles, jornais, já não mais servem à sociedade que os mantém. 
Em qualquer dos casos, embora ninguém possa crer no fim do jornalismo como profissão, poucos fora da redação ainda creem em sua proposta e no seu compromisso com o mundo em que existe ao seu redor. Não foram os protestos de junho do ano passado que trouxeram essa sensação. Não foi a internet - que até hoje os empresários lutam para dominar. Foram 30 anos de concentração de profissionais, salários e atenção em um grupo muito pequeno de empresas. Se apenas seguiu-se a tendência, não se sabe. Sabe-se que a tendência tem reflexos nefastos sobre a profissão e a carreira. 
E sobre a credibilidade da profissão junto ao leitor.

2 comments:

  1. hahahahah, valeu, Flávio, mas acho improvável. Gosto da distância média, não das longas. abs

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