Monday 26 May 2014

Câncer do ano do rato.

Daqui a uns dias, comemoram-se os 20 anos do primeiro momento de circulação do objeto que hoje dá nome e face ao intercâmbio entre nossas horas de trabalho e a sorte do patrão ter nascido patrão. Serão 20 anos deste meio de troca canceriano - nascido em 1 de julho de 1994 - e que nos permitiu nos acostumarmos ao não óbvio: preços que flutuam menos que os ganhos de nossos contracheques - holerite, no paulistês -, nada de congelamento de preços, nunca mais nenhum confisco financeiro semelhante ao que sofreram os hermanos - e nós também, diga-se a verdade. 
Ainda hoje é engraçado pensar naquele momento em que você ganhava em uma moeda, recebia em outra cujas cédulas pagavam o seu chopp e as contas - era a Urv. Todo mês via seu carrinho levar para casa os então campeões do plano que catapultaria a tucanidade paulista a 2 mandatos na cadeira mais alta da república: o frango, o iogurte e o chuchu - que atingiu o valor de 1 centavo por quilo na nova moeda, naquele mês em que seríamos campeões inclusive da Copa do Mundo de Futebol. 
Tudo isto começaria no fim último ano do mandato do presidente que começou vice, passou a titular, topete impávido entre os dois momentos, e ficou mais célebre por outros cabelos - não seus, mas os da moça de sobrenome com leve menção à pelugem que exibiria ao lado do então manda brasa mor do país na maior festa da terra. Célebre imagem, aliás. O que teve então o real de tão diferente de tudo que havia aqui? Com o plano, não haveria mais a tristeza infantil habitual com os cortes de três zeros que faziam milhões de cruzeiros economizados em porquinhos virarem milhares, após pronunciamentos solenes, naquele espaço de tempo rarefeito entre novela das nove e jornal das oito. O montante final nos cofrinhos, ao fim de cada novo pacote, sempre teimava em valer menos a cada novo corte - medido isto em balas e sorvetes de água de poço naquele trem do subúrbio.
Até hoje sinto-me mal pensando em nomes como plano Verão, Bresser, Cruzado, Cruzado novo, e todas aquelas reformas monetárias tão típicas da nação que tinha que enfrentar o dragão da inflação e uma dívida externa impagável. A inflação hoje na casa dos 6% ao ano e a dívida externa já paga parecem demonstrar que mesmo os pesadelos dos economistas daquela época, assim como os carnavais - para felicidade do Itamar, tristeza da Lilian, também teriam um fim. 
O real cimentou uma estrada de tijolos amarelos da classe média rumo ao circuito das viagens internacionais, ao consumo de produtos importados a preços módicos, aos intercâmbios de herdeirinhos em terra de língua civilizada, ainda que mal falassem e mal escrevessem no idioma incivilizado. O real seria ainda o firme esteio da entrada pesada de quinquilharia concebida na costa oeste dos eua, montada na ásia, vendida na Big Apple e comprada nas ruas do país, que tinha então menos livrarias do que a Argentina. O real valeria uma urv - 2.750 cruzeiros - e nasceu no ano do rato. E seria a moeda mais longeva do período democrático. 
Não encararia um ringue sem adversários, no entanto. Seria duramente questionado nos meses após sua implantação, por economistas de muitas vertentes, pelo Pt, pelo Brizola, e seria a primeira vez na história brasileira desde de 1964 que os pobres do país teriam ganhos reais na distribuição de renda - palavras do Marcelo Néri - ministro da Dilma ao Valor. A nova moeda nasceu, o parlamentarismo nem a monarquia triunfaram, temos muitos partidos, muitos economistas e a renda hoje começa a ter padrões distributivos mais parecidos com o período anterior à ditadura - demorou apenas 50 anos. 
Mas o mais sinistro desta efeméride, meu caro, será o uso político que os jornais farão. Preparem-se. Especiais de vinte anos do real, entrevistas com Edmar Bacha, Gustavo Franco e FHC à vista ad nauseum. E claro a tentativa de culpar os atuais motoristas pelo atual estado do carro, naturalmente.
O real escondeu debaixo do tablet, debaixo do mac, debaixo da passagem de avião paga em 10, 12 vezes sem juros uma coisa no entanto: que todos as pessoas deste país pagaram muito por sua implantação com a perda contínua de poder aquisitivo em seus primeiros anos, que foram de arrocho aos salários dos servidores públicos, de controle estrito dos preços administrados, de privatizações de empresas públicas lucrativas ou não e de abertura comercial desenfreada, que com auxílio de um câmbio valorizado, do programa de sanitização dos bancos e do diferimento do pagamento da dívida externa conteve a inflação. O saldo disto é que hoje discutimos a inflação de forma civilizada e em termos mais modestos - embora mais nervosos. E se não compramos em vez do adidas o conga nacional, se temos salmão fresco, vinhos, sabonete, manteiga, queijos, cadarços de sapatos, enfeites de natal, computadores importados, carros chineses, bugigangas eletrônicas a preços pagos em 12 vezes no cartão - é para você pagar pouco por itens industrializados internacionais que hoje não produzimos. Não se trata de defender o gurgel, o skinny, o guaraná baré cola sabor uva ou o ki-suco. Trata-se de um raciocínio simples, embora aparentemente complexo. Tínhamos uma indústria pouco competitiva, tornamos os produtos importados mais baratos, valorizamos o câmbio com a taxa de juros e reservas internacionais, aumentamos a renda da população - favorecendo o consumo e a demanda - e criamos um cenário de controle da inflação através deste tripé: câmbio, abertura comercial, juros altos - o que muitas vezes significará endividamento. O resultado, embora seja mais gostoso culpar alguém, é de um processo que em 20 anos não favoreceu o crescimento do setor que tem os melhores termos de troca face a outros produtos da nossa pauta de exportações - bens industrializados frente a commodities em geral. Por isso, à medida que controlamos a inflação usando câmbio e taxa de juros, precisamos de mais austeridade - gastar menos porque o dispêndio extra tem de ser financiado com mais juros altos que atraiam capitais e que freiem a demanda interna. Tá confuso? Todos estamos, confusos e raivosos, procurando causas fáceis, bandeiras simples, guarda chuvas teóricos que nos coloquem antolhos confortáveis e mostrem a realidade em poucos e esmaecidos matizes. Talvez mais 20 anos e tenhamos melhores ideias sobre o rumo que tomamos. Talvez em 20 anos, nada disso faça diferença. O problema todo, meu caro, é o talvez.  

2 comments:

  1. Lembro que há vinte anos o baleiro do ponto de ônibus trazia o preço da mariola em Cruzeiros Reais e URV. Quer dizer, quando a cotação interessa, não existe essa coisa de "o pobre não entende a economia".

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